LIVRO: “Os anjos não morrem e tu morreste duas vezes”,
de Marta Duque Vaz
Ed. Kalandraka Editora Portugal, Agosto de 2023
“Paravam a conversar cinco minutos, perguntavam por Henrique, se a escola lhe estava a correr bem. Foi numa dessas conversas ocasionais que Laura descobriu qual era o seu número. Enquanto esperava para entrar na cabine de gravação, uma modelo portuense, apaixonada por numerologia, pediu-lhe o nome completo e revelou-lhe o “seis” como o seu número de vida. E por isso, quando reparava numa raspadinha com esse algarismo, Laura apostava, acreditando que, por obra de Pitágoras, lhe pudesse sair alguma maquia que lhe permitisse ir ao dentista e, quem sabe, colocar dois dentes definitivos na gengiva cansada.”
Ainda a cheirar a tinta fresca, é com entusiasmo que abraço “Os anjos não morrem e tu morreste duas vezes”, o mais recente livro de Marta Duque Vaz. Súmula de contos feito de anjos, mas também de alguns fantasmas (não lhes chamaria demónios), o livro é revelador da enorme generosidade e coragem de uma autora que não se inibe de se mostrar nele por inteiro. A autenticidade que emerge de cada palavra faz-se partilha num porta moedas da Parfois ou num poema de Kipling, num workshop de cianotipia, num carro em segunda mão comprado no OLX, no trabalho a recibos verdes, no Corega na prótese frouxa, na Helena Sarmento a cantar Zeca ou Adriano, num copo de Charamba Reserva, num vale de compras, numa iogurteira redonda de cor de laranja, num baloiço azul no fundo do quintal ou nas pratas alisadas dos chocolates Regina. Uma interminável lista de pequenos nadas de que a vida é feita e nos quais se cruzam todas as vidas. Sorrimos ao vê-los passar pelas nossas mãos e sabemos que há um milagre de empatia a acontecer.
Entre a descoberta do ser e a improbabilidade do estar, Marta Duque Vaz tanto aborda a condição da mulher - “nascer homem é uma espécie de fundo de garantia para uma existência absolutamente livre” -, como se debruça sobre a humilhação dos idosos, a inocência das crianças ou o analfabetismo nos dias de hoje. A geografia tanto pode variar entre a grande metrópole que é S. Paulo, no Brasil, e uma aldeia minhota próxima do mar, mas é o Porto, onde a autora vive desde os 19 anos, que se oferece por inteiro aos avanços e recuos de uma narrativa rica de sentimentos e emoções. Este Porto da Lello, do Majestic, da Estação de S. Bento e da velha Arcádia; dos Jardins de Serralves, do Palácio de Cristal e de novo da Estação de S. Bento (a vontade de partir?). Um Porto que se atravessa de carro a ouvir Melody Gardot e o seu Quiet Fire, ou se percorre a pé, de Cedofeita à Cordoaria, entre o Piolho e uma sábia araucária. Um Porto que se desvenda em lugares que muitos encontrarão dentro de si.
Em doze contos, tantos quantos os meses do ano, Marta Duque Vaz convida-nos a reflectir sobre o preconceito de género ou os conflitos de gerações, mas dá igual atenção a questões que só na aparência podem ser consideradas pueris, como um Menino Jesus em cima das palhas coberto de algodão em rama ou um namoro sazonal que não vingou. São muitos os mundos de Marta Duque Vaz, mundos de um mundo mais vasto, interior, onde escrever se revela num acto de amor e de cuidar. Também de partilha. Por isso nos mostra como um canino e um incisivo lateral podem ser travão à aproximação entre um homem e uma mulher, faz de um vestido verde uma sinfonia (ou de como a vida é feita de encontros inesperados), apresenta-nos uma fotógrafa aprendiz de Cesariny e põe um corta-papéis no centro de um mistério. Doce e delicada, a escrita de Marta Duque Vaz coloca com frequência um sorriso no rosto do leitor (por vezes, uma lágrima também). Calmamente, a sedução faz o seu caminho. “Ama como a estrada começa”.
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