LIVRO: “O Olhar Mais Azul”,
de Toni Morrison
Título original | “The Bluest Eye” (1970)
Tradução | Tânia Ganho
Ed. Editorial Presença, Março de 2023
“Quando a minha mãe estava virada para a cantoria, a coisa não era assim tão má. Cantava sobre os tempos difíceis, tempos maus, tempos de abandono. Mas a sua voz era tão doce e os olhos cantarolantes tão derretidos, que eu dava por mim a ansiar esses tempos difíceis, desejosa de crescer “sem um único tostão em meu nome”. Tinha vontade de viver o momento delicioso em que “o meu homem” me abandonaria, em que eu “detestaria ver o sol-poente…”, porque então saberia que “o meu homem deixou a gente”. A infelicidade tingida pelos verdes e azuis da voz da minha mãe retirava às palavras todo o sofrimento e convencia-me de que a dor não só era suportável, mas também doce.”
Quem conhece um pouco da vida e obra de Toni Morrison, galardoada com o Prémio Nobel da Literatura em 1993, sabe que ela sabe o que é ser odiado. Odiado por coisas que não se controlam e que não podem ser alteradas, coisas injustas, indevidas. A experiência ensinou-a a entender essas coisas como parte da vida de um ser humano e a usar a força emocional e o apoio dos que lhe são mais queridos para minimizar ou fazer desaparecer os danos. O problema está naqueles que “se desmoronam, silenciosamente, anonimamente, sem voz para o exprimir ou reconhecer.” Livro de estreia da autora, “O Olhar Mais Azul” nasce da vontade de entrar na vida daqueles que mostram ter menos probabilidades – pela sua idade, género e raça – de resistir a forças tão maléficas, e apontar-lhes caminhos que os levem a rejeitar a via da autoaversão racial e a não sucumbir face às adversidades de uma conjuntura francamente hostil.
Publicado em 1970, “O Olhar Mais Azul” é um clássico da literatura afro-americana que explora as consequências do racismo sistémico na América dos anos 40. Viagem ao mais profundo da alma humana, o livro aborda a forma como mulheres de todas as idades se relacionam com a comunidade, com as famílias, com os homens e entre si. Em particular, chama a atenção para o modo como os ideais e símbolos da beleza branca distorcem e condicionam a imagem que a mulher negra tem dela própria. No centro do romance está Pecola Breedlove, uma criança de onze anos que vive no seio de uma família disfuncional, “uma família aleijada e incapaz”, que além de pobres e negros também são feios, ou melhor, passaram a acreditar que o são. A interiorização deste pressuposto molda a infância de Pecola que, segura da sua fealdade, deseja ardentemente ter olhos azuis. A menina está certa de que serão eles a libertá-la da vergonha e da escravidão implacáveis da sua negritude, fonte de desprezo e escárnio de que é vítima.
Este mundo cruel e insensível situa-se em Lorain, Ohio - onde nasceu a autora do livro -, e é-nos mostrado por Pecola e pelas suas amigas, Frieda e Cláudia, esta última com 9 anos e e a narradora do romance. É nela que Toni Morrison encarna, oferecendo-nos, num discurso isento de eufemismos, uma visão objectiva da brutalidade do racismo, da pobreza, das relações de classe, da dominação masculina e da estreiteza de vistas de uma comunidade mergulhada no preconceito e na exclusão. Mas todas as personagens do romance estão, de alguma forma, desfiguradas pelas relações de poder entre o senhor e o seu criado, no seio das quais nasceram e tentam sobreviver. Este facto torna-as ambíguas e contraditórias, mas Morrison, muito elegantemente, obriga a que os nossos juízos de valor, enquanto leitores, abracem essas complexidades. Obra de enorme alcance, “O Olhar Mais Azul” permanece pleno de actualidade nos dias de hoje. Pode não ser de leitura fácil, certamente não é agradável, mas é obrigatório lê-lo.
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