Páginas

terça-feira, 15 de agosto de 2023

LIVRO: "As Primas"



LIVRO: “As Primas”,
de Aurora Venturini
Título original | “Las primas” (2007)
Tradução | Rita Custódio e Àlex Tarradellas
Ed. Alfaguara, Abril de 2023


“Deixem-me pensar… deixem-me pensar implorava o sujeito ou professor que a partir de agora chamarei sujeito e respondemos em trio que não que estava tudo decidido e que já tínhamos marcado uma hora no Registo Civil e que iríamos lá no dia dois de novembro e pensei, meu deus que data… é o dia dos mortos e já estávamos em meados de outubro e a Betina estava prestes a entrar no oitavo mês e o sujeito perguntou se demos o nome dele e comunicámos-lhe que tínhamos organizado um casamento civil para o próximo dia dois de novembro aconselhadas por um escrivão amigo que verificaria se se cumpria tudo de acordo com a regulamentação e o sujeito interrompeu a sua reconsideração e aceitou, e a Petra disse-lhe filho da puta nem te passe pela cabeça fugir porque a polícia está avisada e eu tenho um amigo comissário.”

Aos oitenta e cinco anos, Aurora Venturini surpreendeu os leitores argentinos quando o seu romance de humor negro e formalmente ousado, “As Primas”, ganhou o Prémio Nueva Novela de Página/12. Aurora Venturini já tinha escrito mais de quarenta livros, mas só nessa altura, em 2007, foi amplamente reconhecida como uma voz absolutamente revolucionária na literatura de língua espanhola e universal. Considerada a sua obra-prima, “As Primas” é a história de quatro mulheres de uma família disfuncional de La Plata, que atravessam uma série de provações - incluindo abortos espontâneos ou ilegais, abusos sexuais, desfigurações e assassinatos -, narradas por uma filha cujo sucesso como pintora lhe oferece a oportunidade de alcançar a independência económica. Esta filha é Yuna, cuja voz inconfundível tanto pode ser franca e absolutamente arrebatadora, como afiada e de uma crueldade sem limites na forma como escrutina mitologias de vizinhança, de família, de sexualidade feminina e de vingança.

Assinado pela escritora Mariana Enríquez, uma das pré-juradas do Prémio, o Prólogo de “As Primas” fala de um texto enviado a concurso escrito à máquina - algo excepcional, mesmo há quinze anos -, os erros tipográficos cobertos com corrector líquido. Mas fala também do encontro “impactante” com Aurora Venturini, da sintaxe radical que evitava a pontuação porque a “cansava”, da brutalidade na exposição das misérias das personagens, na inusitada falta de piedade para descrever uma família (Yuan não tem “problemas cognitivos”, é “deficiente”. Ponto). Terminada a leitura do romance, Enríquez ligou a outra das pré-juradas, Liliana Viola, dando conta da sua estranheza, da sua confusão e admiração. As questões que a perturbaram na altura são precisamente aquelas com que se confronta o leitor: Será este um romance brilhante? O que é que há nele de tão brilhante? Os riscos que corre? A excentricidade? O facto de nunca termos visto nada assim?

A leitura de “As Primas” aproxima o leitor da visão de “Feios, Porcos e Maus”, filme de Ettore Scola. Também aqui a sordidez impera, com Venturini a inviabilizar o estabelecimento de qualquer relação empática entre o leitor e as personagens do livro. “Mas tudo passa neste mundo imundo. Por isso não é lógico afligirmo-nos muito por nada nem por ninguém”, diz ela logo nas primeiras páginas, dando início a um caminho de “vale tudo”, definidor da trajectória do romance. Entre o despudor e o desassombro, o leitor percebe que nada há de inocente nas questões que a autora ousa levantar, em absoluto contraciclo com a moral vigente que quase sempre opta pela ocultação e pelo silêncio. “As Primas” não é uma história redentora - Venturini trata o catolicismo com tanta raiva que a própria ideia de redenção seria contraditória com as suas palavras - e, no entanto, através da arte, oferece às suas personagens a mesma liberdade surpreendente que se permitiu oferecer a si própria ao longo de uma vida rica em amizades e aventuras.

Sem comentários:

Enviar um comentário