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quarta-feira, 16 de agosto de 2023

LIVRO: "Macunaíma"



LIVRO: “Macunaíma, o herói sem nenhum carácter”,
de Mário de Andrade
(data da edição original: 1928)
Edição, introdução, notas e glossário | Marília Laranjeira
Ed. Antítese Editores, Abril de 2021


“Então se escutou um urro guaçu e Capei veio saindo d’água. E Capei era a boiúna. Macunaíma ergueu o busto relumeando de heroísmo e avançou pro monstro. Capei escancarou a goela e soltou uma nuvem de apiacás. Macunaíma bateu que mais bateu vencendo os marimbondos. O monstro atirou uma guascada tirlintando com os guizos do rabo, porém nesse momento uma formiga tracuá mordeu o calcanhar do herói. Ele agachou distraído com a dor e o rabo passou por cima dele indo bater na cara de Capei. Então ela urrou mais e deu um bote na coxa de Macunaíma. Ele só fez um afastadinho com o corpo, agarrou num rochedo e juque! decepou a cabeça da bicha.”

Filho do medo e da noite, Macunaíma nasceu nas profundezas da floresta e foi criado no seio de uma tribo da Amazónia. Um banho de caldo envenenado de aipim transformou-o num adulto que viria a apaixonar-se por Ci, a Mãe da Floresta, de quem teria um filho. Porém a criança morre e Ci sobe aos céus, de luto, transformando-se numa estrela. Macunaíma fica muito triste por perder a sua amada, tendo como única lembrança um amuleto chamado muiraquitã, mas que acaba por perder. Macunaíma descobre no canto de um passarinho uirapuru que o amuleto está em São Paulo, em poder de Venceslau Pietro Pietra, o gigante Piaimã comedor de gente. Com o intuito de recuperar a muiraiquitã, Macunaíma parte ao encontro do gigante na companhia dos seus dois irmãos, Jiguê e Maanape. Depois de um sem número de peripécias, a muiraquitã é recuperada e Macunaíma regressa à Amazónia. Mas o amuleto volta a perder-se e o herói, decepcionado, sobe também aos céus.

Publicado em 1928, “Macunaíma” é considerado um dos principais romances modernistas da história da literatura brasileira e mundial. O seu autor, Mário de Andrade, refere-se a ele como uma “rapsódia” sobre a formação do Brasil, em que vários elementos nacionais se cruzam para contar a história deste “herói sem nenhum carácter”. Repleto de personagens que retratam as características do povo brasileiro, o livro pode ser visto como uma alegoria dos seus defeitos e virtudes. É assim que Macunaíma se mostra em inocência e audácia, mas também em astúcia e egoísmo, imprevisível nas decisões que toma, pouco dado ao trabalho – “ai, que preguiça” são as palavras que mais vezes profere –, um ser lascivo e agarrado aos prazeres do corpo. O herói personifica um Brasil onde a língua e as religiões, as lendas e os mitos, se cruzam com a tradição, as comidas, os lugares, a fauna e a flora brasileiras. Unir todos esses elementos numa narrativa coesa e integrá-la nos preceitos da produção literária modernista, tais são os méritos do autor, emprestando ao livro o seu cunho de genialidade.

A leitura de “Macunaíma” é feita de espanto. A sua linguagem, muito próxima da oralidade, recorre a um léxico delirante (muito úteis as quase trezentas entradas do glossário que pode ser consultado no final do livro). Repleta de situações inverosímeis, a narrativa torna-se credível de tal forma as histórias se fazem eco da realidade. Veja-se, por exemplo, a passagem em que Macunaíma coloca um bichinho no café de Maanape e uma tatorana branca na cama de Jiguê. Os irmãos são picados, atiram para longe os insectos e, para se vingarem, acertam com uma bola em Macunaíma que também a atira para longe. A conclusão de Mário de Andrade é genial: “O bichinho caiu em Campinas; a tatorana caiu por aí. A bola caiu no campo. O foi assim que Maanape inventou o bicho-do-café, Jiguê a lagarta-rosada e Macunaíma o futebol, três pragas.” Misturando lendas indígenas com inovações tecnológicas, inserindo personagens históricas em diferentes contextos e criando raízes e justificações para um vasto conjunto de símbolos pátrios, Mário de Andrade cria uma obra que é um verdadeiro compêndio da cultura brasileira. Um livro essencial!

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