TEATRO: “O Lado Esquerdo”
Texto | Marta Duque Vaz
Encenação, dramaturgia e adaptação | Daniel Freitas
Figurinos e cenografia | Paulo Alvarez Veloso
Voz off | Pedro Ramalho
Interpretação | Sonja Valentina
50 Minutos | Maiores de 16 Anos
Coliseu do Porto (caixa de palco)
22 Maio 2022 | dom | 19:00
Desejar, sonhar. Resistir, desistir. Insistir. Ousar. Isto é António e António sou eu. Somos nós quem, quase há seis meses, observamos longamente o lado esquerdo de Isabel. Da nossa secretária, de segunda a sexta, todos os dias úteis. Aos fins de semana sentimos a falta do seu lado esquerdo. Na verdade, sentimos também a falta do seu lado direito. Ao contrário de Isabel, nunca gostámos de assimetrias. Precisamos de lhe dizer isto, de o partilhar, de afastar o tormento de alimentar fantasias só nossas. Pode ser um acto egoísta, mas está na nossa natureza o querer conhecê-la inteira. É por isso que lhe escrevemos este email. Sabemos que, quando o abrir, o embaraço irá tomar conta de nós, sentados a uns palmos apenas dela. Por isso lhe pedimos que não nos olhe enquanto lê, que tenha fair-play, que considere o momento decisivo. Sabemos que ela sabe que a melhor forma de assustar alguém é ser sincero. Queremos mostrar-nos sinceros naquilo que lhe dizemos - a luz a uma certa hora do dia que a desvenda em sensualidade, as migalhas de bolacha caídas no decote, a cor do verniz a combinar com o bâton que raramente põe, o perfume que emana do seu lado esquerdo. Acreditará ela na nossa sinceridade? (Assustar-se-á?). Estaremos nós a ser sinceros?
Com texto de Marta Duque Vaz e interpretação de Sonja Valentina, “O Lado Esquerdo” é uma peça que se (des)enreda camada após camada, tantas quantas as mulheres que cabem nesta Isabel, “nuns dias treze, noutros dias sete, noutros apenas duas ou três”. São elas que respondem a António, que se expõem sem subterfúgios e sem máscaras, em toda a sinceridade. Elas, sim, assustadoras. Porque de uma força e de uma coragem sem limites, mesmo se apenas falam de maçãs “bravo de Esmolfe”, de famílias normais onde não há mentiras, da felicidade de terem uma janela voltada para uma árvore que as vê crescer, de poetas que lhes acertam em cheio sem que lhes apontem ao coração. Ou nos mostram o quão ténue pode ser a linha que separa o fácil do árduo, o bem do mal, o dar do receber, o santo do serial killer. Escutamos sem conseguirmos olhar nos olhos estas mulheres. O rosto baixo, contemplamos os muitos sapatos desirmanados pelo chão, uma vela acesa no colo de um Buda, a trinca numa maçã, o velho gira-discos. Ombro a ombro, em sobressalto, escutamos. E sentimo-nos desconfortáveis por nos sabermos todos António.
Peça de teatro, “O Lado Esquerdo” é também um livro, com palavras de Marta Duque Vaz e imagens de Carla de Sousa, acabadinho de editar (a sua apresentação teve lugar nos momentos que antecederam a primeira de duas representações no Coliseu do Porto). É nele que se baseia o excelente trabalho de texto que permite dar espessura ao monólogo aqui representado. A subtileza com que nos é apresentado este António que apenas escutamos, as suas palavras e a forma como as profere, são alimento para o fogo que irrompe do mais fundo destas mulheres. Tensa ou resignada, furiosa ou ardente, sempre solta e imensamente livre, Sonja Valentina é enorme na forma como sustenta um texto com esta força e o recheia de momentos onde “o medo, a coragem, a calma ou a raiva, continuam a movimentar-se em distâncias curtas dentro do [meu] peito”. Preso na delicada teia de emoções que se desprendem de cada verdade partilhada, o espectador sente que é chegada a hora de encher a sua vida de discos e de quadros e de cores e de livros. De papagaios de papel e de puzzles aos quais não falte a última peça. De cartas de amor e de beijos em sorrisos quentes e húmidos. De um café, numa esplanada à beira-mar, com uma mulher de nome Isabel.
[Foto: Carla de Sousa | https://www.facebook.com/sonja.valentina]
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