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domingo, 6 de outubro de 2024

CONCERTO: Sangue Suor convida Ana Deus



CONCERTO: Sangue Suor convida Surma e Ana Deus
FLO - Festival Literário de Ovar 2024
Centro de Arte de Ovar
22 Set 2024 | dom | 18:00


O convite partiu do Theatro Circo de Braga e uma nova banda nasceu. Adoptou o nome de “Sangue Suor”, juntando em palco três renomados bateristas da cena musical portuguesa: Rui Rodrigues, Susie Filipe e Ricardo Martins. Tudo começou em 2021, com a encomenda a Rui Rodrigues de “Sangue & Suor”, tema de aniversário da centenária sala bracarense. Um ano mais tarde, a formação deixou cair o “&”, passando a denominar-se “Sangue Suor”. A composição de novos temas, fruto de diversas residências artísticas da banda, viria a dar lugar a “O Salto”, seu primeiro álbum, lançado em Abril de 2023, numa edição conjunta do Theatro Circo e da Omnichord Records. Um momento raro no panorama musical português, elevando a importância da percussão e de três importantes bateristas na busca de liberdade criativa, novos sons, fúria, desassossego, fusão e experimentação. Em Ovar, coube-lhe colocar um ponto final no programa da décima edição do FLO - Festival Literário de Ovar. À inspiração que corre no seu sangue e se derrama em suor, de ritmo e energia feito, juntaram a voz e a palavra em poemas de Gedeão. O público reagiu de forma diversa: Enquanto alguns saíam a meio, os demais permaneceram até ao fim, aplaudindo de pé. Ninguém ficou indiferente.

A batida é forte, sincopada. Uma espécie de respiração rompe o ar e, bem ao longe, escutam-se chocalhos. Naturalista, pastoril, com um acentuado cunho tribal, a música traz-nos a voz de Surma, como um grito melancólico que se ergue no espaço e se espalha em todas as direcções. A guitarra de Vítor Hugo preenche vazios, os sintetizadores completam o rufar dos tambores. Está lançada a viagem a um mundo que rejeita a facilidade e a superficialidade, repleto de sons irrequietos, que cruzam fronteiras e linguagens, abrem caminho à exploração e permitem desvendar novos horizontes. A partir daqui, a ordem é “Para a Frente”, mesmo que de um salto no escuro se trate. Ao longo de quase uma hora de espectáculo, mais saltos se seguirão: Em equilíbrio, de costas, revirado, em parafuso. Além de Surma, cruzamo-nos com as vozes e os sons de Cabrita e Selma Uamusse, mas também com a presença do teclista Óscar Silva e da cantora e performer Ana Deus. É ela que nos trará a interpretação magistral de um poema de Gedeão: “Os homens da minha aldeia / formigam raivosamente / com os pés colados ao chão. / Nessa prisão permanente / cada qual é seu irmão.”

Instrumento rítmico por excelência, a bateria carrega em si a ancestralidade da pele esticada sobre uma caixa de ressonância e, ao mesmo tempo, aquela forma de ser organizada, metódica, segura de quem conduz ou consente que a conduzam. Foi isto que os “Sangue Suor” tão bem souberam exprimir no palco do Centro de Artes de Ovar, convertendo uma hora de espectáculo numa experiência sensorial ímpar. Cada tema é um salto, cada música um risco. E eis Gedeão de novo, e de novo na voz de Ana Deus: “O universo é feito essencialmente de coisa nenhuma. / Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea. / Espaço vazio, em suma. / O resto, é a matéria.” Perguntava-me o que teria passado pela cabeça do programador ao eleger esta banda para encerrar um Festival Literário. Hoje, a resposta parece-me óbvia, pela poesia em forma de música que dela se derrama, poesia definida em risco (no seu duplo sentido). Nela se descobre a essência do ser mutante, a violência de permanecer num limbo, o ferro de um lado, do outro o algodão (doce). Construção, destruição, reconstrução. Salto, a queda no vazio, o mergulho. Subir as escadas e de novo o salto. Desta vez em pontapé à Lua.

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