CONCERTO: A garota não
Com | Ensemble de Cordas da Escola Profissional de Música de Espinho
Direcção | Trevor McTait (arranjos de Nuno Peixoto e Francisco Ribeiro)
Auditório de Espinho
14 Out 2023 | sab | 21:30
“Espinho recebe Setúbal para a 38ª jornada do campeonato. O árbitro já avisou que em vez de cartões amarelos e vermelhos levará consigo uma cartolina a dizer “Casa comigo, Sérgio Miendes!”
O Setúbal preparou um alinhamento fortíssimo e vai entrar em palco num esquema de 3 + 15 com o maravilhoso Ensemble de Cordas da Escola Profissional de Música de Espinho. A treinadora justifica a opção do extraordinário número de players com a necessidade de fazer frente à exigente plateia de espinhenses que esgotaram o estádio antes mesmo dos bilhetes terem sido postos à venda (sensacionalismo).”
Foi desta forma - ousada, irreverente, carregada de humor e ironia - que Cátia Mazari Oliveira, A garota não, se fez anunciar na sua vinda a Espinho, para um concerto há muito tempo esgotado. Um concerto que foi, todo ele, um manancial de livre pensamento, feito de químicas e dilúvios, de amores urgentes e canções sem final. Interventiva, contestária, insatisfeita, inquieta, ao longo de quase duas horas A garota não partilhou com o público a força das palavras e a beleza da música, entremeando-as com saborosas histórias onde couberam, entre outros, um cdzito a rodar constantemente e a massacrar clientes de um restaurante “com músicas que não valem uma bufa”, um carola que perfez 50 concertos de A Garota Não (“o que diz muito da sua sanidade mental”), canções do amor que correu bem e canções do amor que correu mal, relações falhadas mas bons amigos, a bancada mais à direita do parlamento substituída por uma bancada de poetas, o futebol filosófico dos Monty Python, os discos do Sérgio Miendes ou a vingança dos técnicos de som.
Na esteira das histórias de A garota não, conto também uma história. Há um mês atrás fui à FNAC. Queria comprar o 2 de Abril, o CD de que tanto se tem falado, não só para poder ouvi-lo sempre que o entendesse mas, também, para poder levá-lo para o concerto e, quem sabe, colher um autógrafo. Na loja disseram-me que não, que nem em vinil, que o 2 de Abril não conheceu suporte físico, apenas nas plataformas digitais poderia ser encontrado. Ontem soube que é falsa a informação. Comprei o CD (comprei também o anterior CD da cantora e ainda o do Sérgio Mendes) e, para espanto meu, vinha assinado e tudo. Importa agora dizer o seguinte: Este disco é todo feito à mão, sai à cantora os olhos da cara. Se ela pusesse os seus discos à venda nas FNAC’s e em lojas assim, “de peso”, ainda teria de pagar para os ter lá. Por isso prefere manter o processo em modo caseiro, tipo trabalhos manuais, “de mãos dadas com uma menina em Setúbal que se chama Ana Polido e que faz deliciosos trabalhos de costura, unidade a unidade.” A liberdade não está à venda. Conquista-se. Mas dá muito trabalho.
Na companhia de Diogo Costa (bateria e percussão) e Sérgio Mendes (guitarras), a cantora deu-se a ver de forma limpa e livre, revelando influências que vão do hip hop ao reggae, da música cabo-verdiana à música popular brasileira. No fundo das letras e das músicas descobrimos os genes do arrojo e da bravura, da arte e do talento. Também os genes da verdade, do peito aberto, que a mostram em brandura e sonho, vontade de lutar e vontade de vencer. Foi comovente a forma como soube agradecer o empenho dos 15 elementos do Ensemble de Cordas da Escola Profissional de Música de Espinho, que enriqueceram temas como “Prédio mais alto”, “Não sei o que é que fica” e Dilúvio”. Com ela, o público soube que há vozes que não se calam, que acreditam em lugares melhores do que aquele em que nos encontramos e que procuram, com as suas canções, servir de veículo para que esses lugares possam estar mais perto de nós. Lugares que cantem um dia mais claro e um tempo mais doce, lugares de todos - pretos, baixos, velhos, tortos -, lugares onde não se tenha de chorar a morte da Maria das Dores (e da Sara, da Cássia, da Madalena, da Assunção, da Maria, da Elsa, da Conceição, e de todas as outras mulheres mortas, vítimas de violência doméstica em 2022). O caminho é longo, a viagem é comprida, mas A garota não está a fazê-lo.
[Foto: Auditório de Espinho - Academia | https://www.facebook.com/auditoriodeespinhoacademia]
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