CONCERTO: “Samba de Guerrilha” | Luca Argel
Texto | Luca Argel, Nádia Yracema
Cenografia multimédia | António Jorge Gonçalves
Banda | Carlos César Motta (bateria), Neném do Chalé (percussão), Luca Argel (guitarra e voz), Pri Azevedo (teclado e acordeão), Cláudio César Ribeiro (guitarra eléctrica)
Auditório de Espinho
03 Fev 2023 | sex | 21h30
“Há quem tenha visto o movimento pela janela de casa e descido para se juntar à roda. Há quem tenha ficado com medo dela, fechado as cortinas, e ligado às autoridades. Chamaram-lhes selvagens, bárbaros, primitivos. Esqueceram-se que em tempos haviam oferecido àquelas pessoas uma civilização de correntes e chibatas. Mas elas preferiram outra, de tambores e azeite de dendê. Depois ofereceram-lhes a morte e o silêncio. Mas elas cantaram e dançaram. Ofereceram-lhes, enfim, a miséria. Mas, teimosas, elas fabricaram com as mãos a própria alegria.”
O “Samba de Guerrilha” montou arraiais em Espinho. Veio no embalo de Luca Argel e da sua banda, na narração de Nádia Yracema, no desenho em tempo real de António Jorge Gonçalves. Fez-se das músicas e das letras de Cartola, Noca da Portela, Herivelto Martins, Aldir Blanc, João Bosco, Batatinha, Nélson Sargento, Paulinho da Viola ou Alfredo Português. Trouxe a alegria do povo na vibração de um tamborim. Uma alegria que foi e é a sua forma de dizer não à pobreza e à opressão. Ao longo de onze quadros, intensos e duros, “Samba de Guerrilha” mostrou que “a cantiga é uma arma”, abrindo-se em música, ritmo e harmonia. Mas também em teatro, a comédia e a tragédia lado a lado a bradar sentenças. Em animação e fotografia, em dança e literatura. Num momento faz-nos cantar, dançar, bater palmas; no momento seguinte faz cair sobre nós um silêncio de morte, olhos postos no cais do Valongo ou no porto do Ceará, ouvidos à escuta no Quilombo do Quariterê ou na Praça Onze.
Quando Nadia Yracema pergunta a Neném do Chalé de onde é que ele é, o Morro da Mangueira abre-se ao “Samba de Guerrilha”. Ou será antes Alfama, berço de um fadista tornado sambista chamado Alfredo Lourenço, a porta de entrada deste espectáculo? Alfredo Português, assim passou a ser conhecido, escreveu a letra de “Samba do Operário”, as palavras a mexerem com a ditadura militar brasileira: “Se o operário soubesse / reconhecer o valor que tem seu dia / por certo que valeria / duas vezes mais o seu salário”. Mas deixemos que o samba se torne ainda mais explícito, ainda mais heróico, e juntemo-nos à Guerrilha do Araguaia, lá na floresta da Amazónia, onde uma centena de guerrilheiros faz frente a uma tropa de mais de cinco mil soldados do exército brasileiro que quer pôr fim à revolução socialista. É com eles que cantamos “Pesadelo”, bebendo a força das suas palavras: “Quando um muro separa uma ponte une / se a vingança encara o remorso pune / você vem me agarra, alguém vem me solta / você vai na marra, ela um dia volta / e se a força é tua, ela um dia é nossa”.
Voz firme, olhos nos olhos dos espectadores, Nádia Yracema pergunta: E se de repente, na calada da noite, a metade escravizada da cidade decidisse não aceitar mais as correntes e a chibata, será que a outra metade seria capaz de resistir? As palavras remetem para a escravatura, a face mais negra da história do Brasil. Cinco milhões de escravizados, um recorde na história moderna em números absolutos, o Rio de Janeiro a maior cidade africana do mundo. A abolição da escravatura será oficialmente proclamada no dia 13 de Maio de 1888, a cantada final sendo dada às três da tarde, no Paço Imperial, pela princesa regente Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga, filha mais velha do Imperador Pedro II. “Cangoma”, um jongo, ritmo que é uma espécie de avô do samba, irrompe na voz de Luca Argel. A festa e o delírio, porém, não durarão muito tempo. “Na Fazenda do Senhor”, um outro jongo, ilustra o resultado imediato do movimento abolicionista: A liberdade no papel, na prática a mais profunda desigualdade social.
“É proibido sonhar / então me deixe o direito de sambar”. O tom de denúncia agudiza-se, a contestação sobe de tom. “Se não há mais escravidão, para quê negros?”, pergunta-se. Como exterminar, de uma forma moralmente aceitável, a enorme população negra do país? Alemães, polacos, ucranianos, italianos, espanhóis e até japoneses chegam ao Brasil para ocupar os postos que ficaram vagos. São muitos os imigrantes oriundos de Portugal. A vida que encontram não é fácil, mas importa dizer que, apenas por serem brancos, é-lhes oferecido absolutamente tudo o que foi negado aos setecentos mil negros que já lá estavam, em desamparo. São estes negros que, deixando as fazendas do interior do país, migram em massa para as grandes cidades. O Rio de Janeiro é o grande cruzamento de caminhos onde se encontram e se misturam pessoas das mais variadas origens, idiomas e religiões, convivendo na precariedade e compondo o fumegante caldeirão cultural, de onde vai emergir, entre outras coisas, o samba.
Enquanto as reformas urbanas tentam eliminar do centro da cidade esta “gente perigosa”, a polícia faz uma limpeza cultural. A “lei da vadiagem”, autoriza a polícia a prender, invadir e confiscar qualquer pessoa, espaço ou objecto relacionado com as culturas afro-brasileiras. O batuque é crime, seja ele uma roda de capoeira ou um ritual religioso. “Samba / agoniza mas não morre / alguém sempre te socorre / antes do suspiro derradeiro.” Quatro navios militares brasileiros atraem a nossa atenção. Estão ancorados na Baía de Guanabara, com os canhões apontados à cidade do Rio. Amotinados, os marinheiros clamam “Viva a liberdade, abaixo a chibata!”. O líder da revolta, João Cândido, pede ao presidente Hermes da Fonseca que os oficiais parem de tratar a tropa como se os navios da Marinha fossem plantações, como se a escravatura continuasse vigente naqueles navios onde o comando era sempre branco e os marinheiros, quase todos negros. João Cândido é o “Almirante Negro” e Luca Argel faz dele “Mestre Sala dos Mares”: “Glória a todas as lutas inglórias / que através da nossa história / não esquecemos jamais / Salvе o Almirante Negro / que tеm por monumento / as pedras pisadas do cais.”
“Samba de Guerrilha” chega ao fim. Parece que contar estas histórias é falar do passado, mas não. A escravatura só existiu porque houve um discurso racista que a sustentava e este discurso ainda existe. Não só ainda existe como sustenta a violência do presente. A violência da desigualdade social, A violência da intolerância religiosa. A violência da falta de representatividade. A violência da gentrificação das cidades como forma de higienização social. A violência das prisões, agressões e assassinatos diários dos descendentes dos escravizados. Mas se o racismo ainda está vivo, o samba também está. E as histórias que o samba conta abrem frestas no pensamento, abrem fendas nos muros, abrem clareiras. Rodas por onde ainda circulam os saberes daqueles que sobreviveram à mais terrível das travessias e que tanto nos têm ensinado. Talvez ocupando essas pequenas frestas abertas, e fazendo delas uma trincheira, seja possível transformar a guerra em guerrilha, lutar ponto a ponto, lance a lance, até virar o jogo.
[Foto: Auditório de Espinho | https://www.facebook.com/photo/?fbid=619563476847501&set=pcb.619563810180801]
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