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quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

LIVRO: "A História de Roma"



LIVRO: “A História de Roma”,
de Joana Bértholo
Ed. Editorial Caminho, Setembro de 2022


“As imagens mais verdadeiras são aquelas que mentem. Se lembrarmos, ou googlarmos: ‘auto-retrato de Picasso’, enter, ‘auto-retrato de Frida Kahlo’, enter, e o mesmo com ‘Warhol’, ‘Francis Bacon’ ou ‘Cindy Sherman’, enter, é evidente que o desvio da ilustração fidedigna é o que melhor os representa. Pode um texto funcionar como esses auto-retratos?”

Joana Bértholo é daquelas escritoras que sabem como pôr-nos a pensar. Talvez por isso – mas não só – eu goste tanto dela. Respigado deste livro, o excerto acima encerra uma questão à qual a autora procurará dar resposta através de um exercício de autoficção não isento de riscos. Ao longo de trezentas páginas, iremos acompanhá-la nessa busca, à medida que tomamos consciência do quão engenhoso, criativo e desafiante pode o romance ser, tanto para quem o escreve, como para quem o lê. A narradora com o mesmo nome da autora, a narrativa na primeira pessoa, tornam particularmente precário o equilíbrio na estreita linha de fronteira entre a realidade e a ficção. De uma coisa vamos tendo a certeza: Há locais descritos no livro que são bem reais – fiz uma pesquisa por “Eloisa Cartonera”, por exemplo, e encontrei-a em 0,39 segundos. Já quanto às pessoas, sê-lo-ão ou não. Sobretudo esta Joana, vertida no que importa esconder, escondida no que entende revelar.

Joana, pois. A mesma Joana de uma residência literária Lisboa-Maputo, do Serviço de Voluntariado Europeu em Buenos Aires, do programa Leonardo Da Vinci em Berlim, dos muitos amigos que facilitaram ou proporcionaram a sua passagem por Marselha ou Beirute. A mesma ou outra, talvez a de uma sala de conferências em Hiroxima, de uma esplanada na Plaza Mayor de Salamanca, num cais de Montevideu ou num ferry que cruza o Tejo rumo à Trafaria. Numa e (ou) noutra o mesmo fascínio por esse homem que começou por ser um palhaço, cores garridas em roupas dignas, na ponta dos dedos o feitiço na forma de um delicado catavento. Passam dez anos sobre esse momento inaugural no babélico centro urbano da capital argentina e o reencontro dá-se na cidade branca. Dez anos revisitados em dez dias, o encontro a ampliar desencontros, as memórias tornadas díspares, as revelações envoltas em amargura e dor. E uma história intitulada “Roma”, como uma ferida aberta.

Quanto do que escrevemos corresponde à busca de respostas? Mais ou menos organizadamente, adoptamos muitas vezes a figura do “diário”, ao qual confiamos aquilo que de bom a vida nos oferece, mas também as nossas dúvidas e cismas, as nossas angústias e medos. São momentos de reflexão, por vezes de catarse, onde as ideias se alinham em torno das certezas ou, pelo contrário, servem para avolumar as dúvidas. “A História de Roma” é um pouco isto: A partilha dos momentos que marcam uma relação e a dúvida que se instala a partir dela. Dúvida que, no limite, questiona a verdade de cada um. Mas qual verdade? Joana Bétholo vai muito longe neste livro. É genial a forma como aborda, muito subtilmente, temas fracturantes das sociedades actuais – a crise económica, a desigualdade social, os conflitos bélicos, os problemas ambientais, a sobrepopulação, as questões de género – e os integra na narrativa sem se desviar dessa história intensa que é a história de Roma. Apenas “falta dizer que [roma] é amor escrito ao contrário e um fruto deleitoso em caso de til”. E ainda que “romance começa por roma e por vezes também acaba”.

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