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domingo, 28 de novembro de 2021

PALESTRA-CONCERTO: "Válvula"


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PALESTRA-CONCERTO: “Válvula”,
de António Jorge Gonçalves e Flávio Almeida aka Lbc Soldjah
Cine-Teatro de Estarreja
27 Nov 2021 | sab | 21:30


“Graffiti: plural do latim graffito - que designa um rabisco. Considera-se graffiti uma inscrição caligrafada ou desenho pintado ou gravado sobre um suporte que não é normalmente previsto para esta finalidade.

António Jorge Gonçalves é conhecido como um desenhador de múltiplos recursos, estendendo a sua faceta autoral pela banda desenhada, o cartoon editorial, o teatro e as performances de desenho digital ao vivo. Por seu lado, Flávio Almeida, aka Lbc Soldjah, mergulha o seu pensamento e activismo na cultura hip hop, exprimindo-se essencialmente através da música. Ambos são homens de causas e amantes da liberdade. Daí que “Válvula”, uma palestra-concerto que subiu na noite de ontem ao palco do Cine-Teatro de Estarreja, seja a expressão do seu sentir face a um mundo cada vez mais assimétrico, dividido e injusto. Performance em torno do graffiti, “Válvula” oferece-nos uma evolução histórica desta arte e as suas implicações sociais e políticas, desvendando as posições extremadas daqueles que hoje o cultivam e defendem como manifestação artística, face aos demais que vêem nele um acto de vandalismo, logo um crime.

“Começamos em África, há 30.000 anos atrás. Uma pessoa igual a nós encosta a palma da mão numa rocha. Enche a boca com um pó colorido de pedras desfeitas, que mistura com a sua saliva, e sopra, criando a primeira pintura a spray da Humanidade, o primeiro graffiti. Mão. Tacto. Saliva. Palato. Sopro. Pulmão. Olhar. Visão. E com isto diz: Eu estou aqui.” Este é o princípio de uma longa viagem que nos irá levar a Pompeia, à Síria, a Constantinopla, ao Egipto ou ao Sul do Continente Africano, ao encontro de artistas, comerciantes, turistas ou pastores, ao encontro desse impulso que trazemos dentro de nós, uma quase necessidade de escrever ou desenhar em paredes. Aqueles que nunca deixaram a sua mensagem nas portas de uma casa de banho, gravaram juras de amor nas árvores ou nos bancos de jardim ou inscreveram a sua marca no tampo das mesas da escola ou do café, que atirem a primeira pedra. Parece inegável que trazemos nos genes essa necessidade de imprimir a nossa “tag” nos locais por onde passamos; que afinal somos todos “writers”, só que uns mais expressivos (ou compulsivos) que outros. Parece, enfim, que andamos todos a dizer a mesma coisa há milhares de anos: "Nós Estamos Aqui”.

Dos símbolos individuais aos colectivos, recuamos à Nova Iorque dos anos 60, ao encontro de um adolescente de origem grega chamado Demetrius e da marca identitária “Taki 183” que foi deixando pelos locais onde passava. Demetrius terá sido uma das primeiras pessoas a fazê-lo de forma sistemática e, por esse motivo, ocupa um lugar de charneira na história do graffiti. Mas não ficaria sozinho por muito tempo. Os movimentos contestários surgidos nessa altura entre os jovens de classes mais desfavorecidas, levaram ao aparecimento da cultura Hip Hop, onde começaram a pontuar os DJ ou cultores da música, os MC ou cultores da palavra, os B. Boys e as B. Girls ou cultores da dança, e os “writers” ou cultores do graffiti. Dos símbolos territoriais nas grandes cidades norte-americanos ao paulista “alfabeto da pixação” e das suas semelhanças com a escrita rúnica de há quase dois mil anos, entregamo-nos com emoção a esta verdadeira aula de História de Arte que remete para uma “Odisseia pela Sobrevivência”.

Talvez as diferenças entre os pintores primitivos das grutas de Lascaux ou do Vale do Côa e artistas mais recentes como Jean-Michel Basquiat ou Keith Hearing, não sejam tão grandes assim. Talvez a distância entre o trabalho dos grandes muralistas mexicanos como Diego Rivera, Aurora Flores, David Siqueiros ou José Orozco não se afaste assim tanto dos nossos muralistas do pós-25 de Abril ou até de artistas urbanos actuais como Banksy que, com as suas mensagens contestatárias, parecem gritar “Nós Queremos Mudança”. A história do graffiti, porém, pode apresentar outras nuances, nomeadamente a forma como o vemos, como atestamos da sua legalidade ou transgressão, como se define o que é bom ou mau graffiti. É que hoje não vemos da mesma forma a assinatura de um turista chinês actual num baixo relevo do templo de Luxor ou a inscrição de um turista inglês como Lord Byron numa coluna do templo de Poseídon, no Cabo Sounion, feita há duzentos anos. Dois pesos e duas medidas? É possível.

De enorme alcance, as mensagens que António Jorge Gonçalves e Flávio Almeida vão deixando, são pontos de partida para uma reflexão mais lata e abrangente que deve ser feita tendo como ponto de partida esse grupo maior a que chamamos Humanidade e no qual nos inserimos. Um grupo que tem na arte de pintar paredes um dos muitos pontos em comum. Um grupo hoje tão dividido mas que tem em Panmela Castro, Wanksy ou Nomen, verdadeiros faróis nas agitadas águas da discriminação e das injustiças sociais e que nos vêm dizer que o graffiti pode, realmente, influenciar as nossas vidas. O projecto de Siza Vieira para um edifício em Berlim, edifício esse conhecido hoje como “Bonjour Tristesse“, é um dos maiores exemplos do poder do graffiti. Tal como no cinema, há no graffiti lugar para tudo e para todos. “Sou um vândalo, sim, mas faço uma coisa para te abrir os olhos.” Pensemos nisto e, ao mesmo tempo, pensemos no privilégio que é termos a possibilidade de assistir a espectáculos com tanta qualidade e interesse como este. As onze (!) pessoas na sala sabem bem do que estou a falar. E também saberão porque motivo éramos apenas onze.

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