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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

CONCERTO: “The Art of Song vol.2 - Between Sacred and Profane”



CONCERTO: “The Art of Song vol.2 - Between Sacred and Profane”
Com | Filipe Raposo (piano e composição musical), Rita Maria (voz e composição musical)
Auditório de Espinho – Academia
23 Fev 2025 | dom | 18h00


“Uma chuva não é só chuva no momento em que cai. Começou em água que o calor das emoções evaporou, nuvem que se foi deslocando, juntando momentos, sabedorias e afectos. Ao cair, desliza, inclina-se em leito de rio, campo de cultivo, braço de mar, montanha. São tantos os terrenos de onde parte. É a memória dos afectos evaporando. Vários tempos de escuta e de cultivo que, evaporando conhecimentos e outras águas, se foram juntando numa ou várias nuvens de ideias. Depois de caída, torna o chão mais permeável a novos plantios, a novas colheitas, a novas águas evaporando, subindo de novo ao céu do que mais importa.”
Amélia Muge

Regresso a Espinho e ao seu Auditório. Volto a uma casa que aprendi a respeitar e a amar, pelo cuidado com que me trata e pela excelência da programação que oferece. É a primeira visita este ano e sei que muitas mais se seguirão nos próximos tempos, sempre com renovada alegria e emoção. A proposta para este final de tarde de domingo não poderia ser mais aliciante. Depois do muito bem-sucedido primeiro volume de “The Art of Song”, Filipe Raposo e Rita Maria quiseram trazer-nos o segundo capítulo deste seu projecto, ao qual decidiram chamar “Between Sacred and Profane”. O conjunto de músicas escolhidas para integrar o álbum parte das influências musicais que moldaram artisticamente os dois músicos e que coabitam num território próprio, fundindo a música erudita, o jazz e o cancioneiro tradicional. Podemos ler no texto que acompanha o disco, e que Filipe Raposo tão bem ilustrou nas palavras dirigidas ao público, que “nas sociedades arcaicas, cada intervenção do homem no ambiente rural, como o abrir a terra com um arado ou o derrubar uma árvore da floresta, possuem os ritmos de uma sacralidade latente, não se sentindo diferenciação entre as actividades laico-profanas e a actividade sagrada. É como se vivessem numa permanente imersão no sagrado. Existe uma pulsão unificante, onde tudo é sagrado e profano.”

“The Art of Song, vol.2 - Between Sacred and Profane” pretende, através de canções colhidas de épocas e contextos distintos, evidenciar o papel do canto e da sua força telúrica como factor primordial na socialização, na passagem de conhecimento e no acompanhamento das actividades rituais do trabalho e da religião, do mundo dos homens e dos deuses. O repertório surge assim organizado por temáticas que nos conduzem pela bruma do tempo: as Deusas e os Homens, os Ritos e o Trabalho, as Mãos e os Frutos, da Vida e do Amor, do Berço à Cova, num Eterno Retorno revisitado geração após geração. Não é de espantar, pois, que ao cancioneiro litúrgico do barroco se junte um canto de trabalho tradicional de Penha Garcia, ou que um Hino sagrado coabite com uma cantiga de embalar, igualmente originária dessa localidade da Beira Baixa. Não é de espantar e é, já que tudo é espanto na colecção de treze momentos musicais que nos foram dados a ouvir, espelho da magia, dos mitos e das crenças tão próximos das dimensões existenciais do ser humano. Entre o sagrado sacrificial e o profano ritual, a música e as palavras de Filipe Raposo e Rita Maria dão-nos o conforto de uma visão ordenada da realidade, inseridos que estamos numa sociedade cada vez mais caótica e fragmentada como é a nossa.

“(…) Magistrada Nossa natural / Vitoriosa / Curandeira dos aflitos / Amante de mil maridos / Há mais de um milhão de idos / tormentosa”. Extraída de “Galinhas do Mato”, o último álbum editado em vida por Zeca Afonso, “Alegria da Criação” abriu o concerto e foi dele “pedra de toque”. Escutar em fundo a voz e adufe de Idalina Gameiro (também o adufe de Emília Antunes) como uma ladainha, sobre a qual se impõe a pureza das cordas (vocais de Rita Maria e do piano de Filipe Raposo), é no mínimo arrepiante. Os ritos e os mitos que se estendem ao longo do concerto levam-nos de regresso à origem, explicando mistérios, apaziguando e reconfortando, conferindo significado e valor à nossa existência. Escutar, em sequência, “Cantiga da Ceifa” e “Proserpina”, de Jean-Baptiste Lully, é uma experiência celestial. Já a “Suite em Lá menor, RCT 5, Gavotte et six doubles” de Jean-Philippe Rameau constituiu, para além do primor interpretativo, um divertimento sem par, com arranjos que “empurram” as variações para géneros insuspeitados, um choro aqui, um corridinho ali. E há também “Vai-te Cuca”, canção de embalar e, ao mesmo tempo, espécie de exorcismo sobre a morte que colhia as crianças no sono, da qual fica a doçura de uma sílaba que se prolonga, o amor que só um sussurro pode conter.

terça-feira, 15 de novembro de 2022

CONCERTO: Amélia Muge



CONCERTO: Amélia Muge
Auditório de Espinho
05 Nov 2022 | sab | 21:30


Quando a fome se junta à vontade de comer, o resultado só pode ser uma barrigada. No caso de Amélia Muge e do seu “Amélias”, uma barrigada da melhor música, amassada no pó da terra e na raíz das gentes, de braço dado com a tradição, um piscar de olhos às muitas margens do grande lago atlântico. Uma música tão viva e tão pura, tão nossa. Que fome de a escutar, tanto tempo depois de um saudoso “Maio Maduro Maio” no balcão do Carlos Alberto (no tempo em que o Carlos Alberto ainda tinha balcão), de um e do outro lado o João Afonso e o Zé Mário Branco. Sempre com ela nos geniais “Taco a Taco” e “Todos os Dias”, escutados vezes sem conta, auxiliares preciosos nos melhores momentos com os filhos bebés ou já crescidos. Que bom vê-la de novo ali, num Auditório de Espinho repleto, ela por nós e nós por ela, num momento cúmplice e solidário, peito pequenino para tanto coração, rosto estreitinho para tanta alegria e tanto sorriso. Com ela, três enormes parceiras destas andanças, “amélias” como ela, Rita Maria (voz), Maria Ceia (percussão e voz) e Catarina Anacleto (violoncelo e voz), multiplicando as muitas vozes que há na voz de Amélia Muge. E nós, claro, “amélias entre amélias”, que nisto ou há moralidade ou comem todos.

A pensar as vogais, embarcamos na viagem. Está tudo ali, naquele tema inaugural: a magia feita encanto, o encanto feito jogo, o jogo feito música. Vemos aquelas letras, como se abrem e fecham, como se transformam em grito ou chamamento. Tocamos-lhes com a voz e logo se repartem em mil sons, em mil tons. A canção é lengalenga, é litania, é ladainha. Nela se congrega o fascínio dos cantos em coro, com todo o seu sentido comunitário, o seu potencial harmónico, o poder do seu ritmo, a sua respiração em conjunto, a sua inestimável contribuição para o reforço de todo o tipo de colectivos. É, pois, com naturalidade que abrimos o coração a “Eito Fora” e sentimos a força da Brigada Vitor Jara num tema tradicional que é título de um dos mais emblemáticos álbuns da música portuguesa. Com a mesma naturalidade que abraçamos os temas seguintes - “Meu Coração Emigrou”, “D. Falcão” (os falcões de Hélia Correia, esses mesmos), “Às Portas do Céu”, “A Sta. Engrácia” e “Fica Mais Um Bocadinho” - e vemos que deles se levantam pontas de uma meada que se desdobra e nos revela as “galinhas do mato” do José Afonso, a “muhinhana” do Dilon Djindji, a “senhora dos remédios” do Grupo de Cantares de Manhouce ou a “canção dos despedidos” do José Mário Branco.

Em cada canção, é de si e do seu mundo que Amélia Muge nos fala. É ela quem nos pega pela mão e faz recuar no tempo, aos tempos da infância em Moçambique e ao alto de um miradouro sobre o mar onde as amas de diversos meninos se juntavam e onde os seus cantos ritmados, em língua ronga, eram diários. É nestes cantos que a artista revisita o seu primeiro sentimento plural, de uma pertença maior, a dança e o embalo como fundamentos desse respirar comum. São eles que vemos espraiados num emotivo “Chove Muito, Chove Tanto”, ao mesmo tempo que piscam o olho aos divertidos “Versão Condensada do Nascimento dos Desertos” ou “As Alcaparras” ou aos sensíveis “A Prenda dos Amantes”, “O Tempo Arrefece” e “Se a Vida é Pintura”. É por estas e por outras que Amélia Muge é, entre nós, uma das mais extraordinárias representantes do canto individual a vozes e de criação de ambientes vocais. E é por isso que escutá-la - e ao seu canto, simultaneamente plural e individual - é, para além de um prazer, um dever. Se ainda as houvesse, “Taco a Taco”, já no “encore”, encarregou-se de dissipar todas as dúvidas. “Com que coto catucão”. Enorme Amélia. Obrigado!