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terça-feira, 15 de novembro de 2022

CONCERTO: Amélia Muge



CONCERTO: Amélia Muge
Auditório de Espinho
05 Nov 2022 | sab | 21:30


Quando a fome se junta à vontade de comer, o resultado só pode ser uma barrigada. No caso de Amélia Muge e do seu “Amélias”, uma barrigada da melhor música, amassada no pó da terra e na raíz das gentes, de braço dado com a tradição, um piscar de olhos às muitas margens do grande lago atlântico. Uma música tão viva e tão pura, tão nossa. Que fome de a escutar, tanto tempo depois de um saudoso “Maio Maduro Maio” no balcão do Carlos Alberto (no tempo em que o Carlos Alberto ainda tinha balcão), de um e do outro lado o João Afonso e o Zé Mário Branco. Sempre com ela nos geniais “Taco a Taco” e “Todos os Dias”, escutados vezes sem conta, auxiliares preciosos nos melhores momentos com os filhos bebés ou já crescidos. Que bom vê-la de novo ali, num Auditório de Espinho repleto, ela por nós e nós por ela, num momento cúmplice e solidário, peito pequenino para tanto coração, rosto estreitinho para tanta alegria e tanto sorriso. Com ela, três enormes parceiras destas andanças, “amélias” como ela, Rita Maria (voz), Maria Ceia (percussão e voz) e Catarina Anacleto (violoncelo e voz), multiplicando as muitas vozes que há na voz de Amélia Muge. E nós, claro, “amélias entre amélias”, que nisto ou há moralidade ou comem todos.

A pensar as vogais, embarcamos na viagem. Está tudo ali, naquele tema inaugural: a magia feita encanto, o encanto feito jogo, o jogo feito música. Vemos aquelas letras, como se abrem e fecham, como se transformam em grito ou chamamento. Tocamos-lhes com a voz e logo se repartem em mil sons, em mil tons. A canção é lengalenga, é litania, é ladainha. Nela se congrega o fascínio dos cantos em coro, com todo o seu sentido comunitário, o seu potencial harmónico, o poder do seu ritmo, a sua respiração em conjunto, a sua inestimável contribuição para o reforço de todo o tipo de colectivos. É, pois, com naturalidade que abrimos o coração a “Eito Fora” e sentimos a força da Brigada Vitor Jara num tema tradicional que é título de um dos mais emblemáticos álbuns da música portuguesa. Com a mesma naturalidade que abraçamos os temas seguintes - “Meu Coração Emigrou”, “D. Falcão” (os falcões de Hélia Correia, esses mesmos), “Às Portas do Céu”, “A Sta. Engrácia” e “Fica Mais Um Bocadinho” - e vemos que deles se levantam pontas de uma meada que se desdobra e nos revela as “galinhas do mato” do José Afonso, a “muhinhana” do Dilon Djindji, a “senhora dos remédios” do Grupo de Cantares de Manhouce ou a “canção dos despedidos” do José Mário Branco.

Em cada canção, é de si e do seu mundo que Amélia Muge nos fala. É ela quem nos pega pela mão e faz recuar no tempo, aos tempos da infância em Moçambique e ao alto de um miradouro sobre o mar onde as amas de diversos meninos se juntavam e onde os seus cantos ritmados, em língua ronga, eram diários. É nestes cantos que a artista revisita o seu primeiro sentimento plural, de uma pertença maior, a dança e o embalo como fundamentos desse respirar comum. São eles que vemos espraiados num emotivo “Chove Muito, Chove Tanto”, ao mesmo tempo que piscam o olho aos divertidos “Versão Condensada do Nascimento dos Desertos” ou “As Alcaparras” ou aos sensíveis “A Prenda dos Amantes”, “O Tempo Arrefece” e “Se a Vida é Pintura”. É por estas e por outras que Amélia Muge é, entre nós, uma das mais extraordinárias representantes do canto individual a vozes e de criação de ambientes vocais. E é por isso que escutá-la - e ao seu canto, simultaneamente plural e individual - é, para além de um prazer, um dever. Se ainda as houvesse, “Taco a Taco”, já no “encore”, encarregou-se de dissipar todas as dúvidas. “Com que coto catucão”. Enorme Amélia. Obrigado!


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