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quinta-feira, 14 de setembro de 2023

LIVRO: “Jénifer, ou a princesa da França: As ilhas (realmente) desconhecidas”



LIVRO: “Jénifer, ou a princesa da França: As ilhas (realmente) desconhecidas”
de Joel Neto
Ed. Fundação Francisco Manuel dos Santos, Fevereiro de 2023


“Jénifer Armelim é uma garotinha aloirada e melancólica que costuma passar as tardes, depois da escola, sentada no muro de cimento frente à casa onde vive. Por vezes, convence um dos lavradores da freguesia a levá-la com ele até às pastagens, onde passam ambos umas horas a tratar dos animais ou a enxotá-los na direção do pasto vizinho. Dizem os homens que é frequente irem dar com ela debruçada sobre a parede de algum cerrado, a olhar o mar ao fundo e a assobiar. Mas nunca perde a noção dos movimentos dos bichos, e, acaso um deles ameace tresmalhar-se, desperta das suas contemplações e acorre a corrigir-lhe o rumo.”

É sobre a região mais pobre de Portugal que nos fala “Jénifer, ou a princesa da França: As ilhas (realmente) desconhecidas”, o mais novo “retrato” da colecção da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Sobre pobreza, porventura extrema, mas também sobre abandono escolar, exclusão, droga e abusos sexuais. A protagonista desta história é Jenifer, uma menina quase a fazer onze anos, que passa o tempo sentada no muro de cimento que ladeia a estrada junto ao bairro social onde vive. Uma menina inteligente, reservada mas de resposta pronta, que sonha ser “unicórnia” (bailarina) ou, talvez, astronauta, baleeira ou bióloga marinha.  Vê-se nas pessoas que gostaria de ser, a habitar os lugares que acredita que essas pessoas habitam, mesmo sabendo ser de areia solta a montanha de sonhos com que alimenta o passar dos seus dias. Afinal, uma menina que vive num verdadeiro paraíso para aqueles que têm posses, mas que se revela um inferno cruel para os mais pobres e desfavorecidos.

Segundo dados do Eurostat, os Açores são uma das regiões mais pobres da Europa. No arquipélago, a riqueza por habitante, ajustada ao poder de compra, situa-se 25% abaixo da média da União Europeia. Um em cada quatro jovens açorianos entre os 15 e os 34 anos não trabalha nem estuda. O Rendimento de Inserção Social chega a mais de 10% da população (em comparação com os 3% da média nacional de beneficiários) sendo nos Açores que o seu valor é mais baixo, rondando os 86 euros por beneficiário. Joel Neto quis pôr o dedo nesta ferida e nas suas consequências. Fê-lo através de uma reportagem ficcionada, trazendo para primeiro plano uma Jénifer que é, afinal, o somatório de tantas crianças como ela, reféns da lei das probabilidades segundo a qual nascer num bairro social e sobreviver ao parto, escapar a uma violação antes de chegar à idade adulta, de concluir o liceu, de evitar tornar-se alcoólica, de arranjar um emprego e mantê-lo de forma a sustentar com dignidade a sua família é quase um milagre. E que, mesmo assim, não desistem do sonho de virem a ser princesas da França.

“As ilhas (realmente) desconhecidas” não são um roteiro turístico para os mais afoitos ou sedentos de aventura. Não se dão a ver na praia deserta ou na baía de coral, no trilho que só alguns conhecem ou no spot perfeito para apreciar o nascer (ou o pôr) do sol. Dão-se a ver nos bairros sociais reduzidos a guetos, na subsidiação que sustenta toda a economia açoriana - do turismo aos transportes -, nos atestados médicos forjados para justificar faltas à escola, nos desvalidos em volta da carrinha da metadona, nos carros de alta cilindrada que percorrem os bairros ao anoitecer, nos boletins de voto fotografados, garante de mais um ano de “Resí”. Assertivo, frontal, corajoso, determinado na obrigação de denunciar os meandros duma realidade que conhece bem, Joel Neto oferece-nos um libelo fortíssimo contra as injustiças e as desigualdades que se abatem sobre uma parte significativa da população açoriana. Fá-lo ao seu estilo, numa escrita que lhe reconhecemos belíssima, falando pela voz de uma criança cuja inocência, como veremos, já se perdeu. Um livro obrigatório.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

LIVRO: "Os Sítios Sem Resposta"



LIVRO: “Os Sítios Sem Resposta”, 
de Joel Neto 
Ed. Porto Editora, Abril de 2012


“Que se lixe. Um homem muda de mulher, muda de partido, muda de religião, muda de tudo aquilo que quiser, até de sexo, mas de clube é que não muda nunca. Portanto, viva o Sporting!”

Quem já leu Joel Neto e, em particular, “A Vida no Campo”, conhece um pouco da vida deste homem, desde as suas origens terceirenses à intensa actividade como cronista em alguns dos mais importantes jornais portugueses e ao seu amor filial ao Sporting. Daí o sorriso instalado na cara do leitor ao tomar nota do “anúncio” que ocupa as duas primeiras páginas do livro, ao mesmo tempo disponível para aceitar aquilo que não pode passar de um devaneio e expectante quanto ao que irá dali sair. O caso não é para menos. Se mudar de clube é uma impossibilidade, virar as costas ao clube de sempre e abraçar o emblema rival é do domínio do imponderável, do impensável, do ignominioso. É matéria apenas aceitável às criancinhas e aos pobres de espírito. Ou à ficção, digo eu, terreno fértil para o sonho, onde céu e terra se fundem e onde se operam milagres com um simples estalar dos dedos.

Joel Neto sabe, como poucos, pegar em pequenos pedaços de vida e transformá-los em deliciosas histórias, ora repletas de humor, ora amargas ou rudes, mas sempre poéticas, pautadas pela simplicidade do olhar, pela nobreza do gesto e pelo bater do coração. Talvez por isso as expectativas em torno de “Os Sítios Sem Resposta” saiam um pouco frustradas. Necessário será adentrar no livro até ao quinto e penúltimo capítulo para se reconhecer o autor naquilo que há de melhor na sua escrita. A descrição do pequeno lugar onde vive, do primeiro jogo de futebol no pelado do Lusitânia, da bondade da Maria Carminda ou da sabedoria do José Corvelo, da cumplicidade com o pai ou de um Sporting-Benfica no pequeno televisor do salão social da Casa do Povo de São Bartolomeu, são preciosas parcelas do domínio da emoção e da memória que preenchem e confortam o leitor.  

Um livro, porém, é muito mais do que um capítulo e “Os Sítios Sem Resposta” é também a vida naquilo que ela pode ter de mais rotineiro e vulgar, o dinheiro, as mulheres ou a bebida a porem a nu a solidão de uma existência oscilando entre as quatro paredes de um modesto apartamento e as quatro paredes de um vulgar escritório. Embora possa parecer fraca matéria-prima para grande literatura, a verdade é que há escritores que fizeram muito mais com muito menos. Não será o caso de Joel Neto, pouco hábil na construção destas personagens à deriva, inconsistentes, reféns das emoções mais primárias, sem espessura que as sustente para além do cliché. Usando a gíria do futebol, infelizmente pouco presente neste romance, é como se tivéssemos “dois terços da equipa em gestão de esforços e a totalidade do meio-campo de volta de um losango demasiado estático para permitir uma adequada basculação ofensiva”. Para a história fica o golo solitário, surgido quase ao cair do pano. Um autogolo, acrescente-se, precedido de fora-de-jogo.

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

LIVRO: "A Vida no Campo"



LIVRO: “A Vida no Campo”,
de Joel Neto
Ed. Marcador Editora, Maio de 2016


“(...) De resto, há que reunir um pacote de manteiga, duas colheres de banha, dois repolhos grandes e os suspeitos do costume: três cebolas, duas folhas de louro e uma dúzia de bagas de pimenta-da-jamaica. Se ninguém estiver a olhar, pode-se lançar mão de um cubo de caldo de carne. Mas o essencial é dispor de um copo de vinho branco (Verdelho, daí não dá para fugir) e de uma concha do molho de uma alcatra prévia.”

Quando, há duas décadas atrás, a minha sobrinha pretendeu adquirir a nacionalidade suiça, foi convidada a prestar provas na Mairie de Lausanne. Aí, entre as várias questões colocadas para medir o seu grau de aptidão para a cidadania daquele país, estava a receita do Papet au Poireau, o prato mais representativo do Cantão de Vaud. Sou daqueles que acreditam ser a gastronomia um importante factor de diferenciação social e um valioso elemento para a educação para a inclusão. Se falo nisto a propósito de “A Vida no Campo” é porque muito me sensibilizou ver Joel Neto, a par dos relatos em torno “da sua horta e do seu pomar, do seu jardim de azáleas e de uma panóplia de vizinhos de modos simples e vocação filosófica”, falar detalhadamente do que de mais tradicional encontramos na Ilha Terceira em matéria de comida e, mais do que isso, deixar-nos com água na boca à conta de uma Sopa do Espírito Santo ou de uma Alcatra, de uma Dona Amélia ou de uma Sopa Azeda (ou Caldo Temperado).

Tomando a forma de um diário, entre Lisboa e o Lugar dos Dois Caminhos, freguesia da Terra Chã, ilha Terceira, as estações do ano a pontuarem os ciclos naturais, “A Vida no Campo” devolve-nos o viver e o sentir de Joel Neto ao longo de um ano. Convocando histórias e memórias ou, simplesmente, observando e descrevendo o que se passa à sua volta, o autor abre uma janela sobre o campo, desmistificando uma certa visão romântica que dele se possa ter. É que se o campo tem as suas virtudes e a sua evocação pode tomar a forma de um poema, nele encontramos também o que de pior pode haver no ser humano. Este é, aliás, o grande mérito do escritor: não ceder à tentação de fazer comparações, recusando essa contabilidade estéril onde campo e cidade se assumem como colunas de deve e haver. Para além, naturalmente, de prestar uma bela homenagem aos Açores e aos açorianos com este seu livro.

Ao longo de mais de duas centenas de páginas, o autor leva-nos pelos caminhos da religião e da mitologia, do folclore e dos saberes. Por seu intermédio, ficamos a saber que Açores e aves de rapina não são, aqui, faces da mesma moeda. Com ele ouvimos ecoar o “Semper Fidelis” no velhinho Municipal de Angra em tardes de futebol, desfilamos em noite de São João, subimos os níveis de adrenalina numa tourada à corda e aprendemos a escutar o vento. Também aprendemos que o “Almanaque do Camponez” precedeu numa duzia de anos o “Borda d'Água”, que andar de urbana era uma inevitabilidade, que os Supermercados Guariti são comércio local do bom e que uma casa de campo nunca está definitivamente pintada, nem reparada, nem sequer limpa. Com ele podemos até ir mais longe, ao encontro de Obulinas e Firmilindos, Gabinos e Unerinas e de toda uma preciosa onomástica graciosense ou perceber que o Marcos matou o Pedro, não por maldade humana mas pelo poder de um momento. Fica apenas por saber a resposta a essa questão enigmática (embora o Natal ainda venha longe): “O menino mija?”

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

LIVRO: "Meridiano 28"



LIVRO: “Meridiano 28”,
de Joel Neto
Cultura Editora, Maio de 2018


Mesmo não gostando de sinopses, sou forçado a aceitar que elas existam como forma de mais facilmente chegar ao leitor. Mas tenho para mim que uma sinopse é tanto melhor quanto menos reveladora for e, nesse sentido, escrevê-la é uma arte. Pois eu gosto da sinopse de “Meridiano 28”, uma vez que o livro é muito menos sobre 1939 e o estalar do conflito mais mortífero da História da Humanidade, sobre os periscópios de Hitler a emergirem em frente ao Faial ou sobre as estrelas de cinema e da música, estadistas e campeões de boxe a desembarcarem dos hidroaviões da Pan Am e muito mais sobre os sonhos e ilusões que só na juventude têm esse poder de arranhar a alma ou sobre a amizade que nos vai dizendo ser “muito mais o que nos une que aquilo que nos separa”.

Para além da sua dimensão de puro divertimento, há em “Meridiano 28” essa “costela” do lado da História que nos convida a recuar cerca de oito décadas aos tempos da II Guerra Mundial e a uma altura em que “a cidade da Horta deixava de ser um pacato porto no mar alto, base avançada para a distribuição de cabos telegráficos e escala de oportunidade para aviões de famosos e inconsequentes, para se transformar numa agitada urbe de interesses estratégicos”. Não menos interessante, podemos perceber ainda um certo desvendar das possíveis motivações para se escrever um livro ou alguns dos muitos caminhos que o processo de escrita pode seguir, do esconder-se atrás de citações ou do evitar dos “bloqueios” mediante o parafraseado dos grandes mestres no início de cada capítulo, a essa ideia deveras interessante inscrita no próprio livro, a de que o escritor, no caso concreto José Filémom Marques, é o resultado duma luta entre a paciência e a impaciência.

Este é um livro que se revela particularmente apelativo na forma como a trama narrativa se desenvolve, o final de cada capítulo coincidindo com um pequeno clímax a aguçar a curiosidade do leitor e a compeli-lo a prosseguir nessa autêntica voragem das páginas. O autor mostra-se exímio numa arte (ou será técnica?) que remete para a vibrante literatura juvenil, as imagens vivas e apelativas a convidarem o leitor a viver as maiores aventuras. Recusando qualquer comparação com “Arquipélago”, romance publicado por Joel Neto em 2015 e do qual gostei muitíssimo, diria apenas que a leitura de “Meridiano 28” me soube um bocadinho a desconsolo. Para tal muito contribuiu o factor de previsibilidade naquela que será, porventura, a mais intensa das várias histórias que compõem o romance. Tal não constituiu, contudo, motivo de desinvestimento na sua leitura, de tal forma sobejam motivos de interesse ao longo de mais de quatrocentas páginas e é muito o prazer que se extrai deste livro.