LIVRO: “Jénifer, ou a princesa da França: As ilhas (realmente) desconhecidas”
de Joel Neto
Ed. Fundação Francisco Manuel dos Santos, Fevereiro de 2023
“Jénifer Armelim é uma garotinha aloirada e melancólica que costuma passar as tardes, depois da escola, sentada no muro de cimento frente à casa onde vive. Por vezes, convence um dos lavradores da freguesia a levá-la com ele até às pastagens, onde passam ambos umas horas a tratar dos animais ou a enxotá-los na direção do pasto vizinho. Dizem os homens que é frequente irem dar com ela debruçada sobre a parede de algum cerrado, a olhar o mar ao fundo e a assobiar. Mas nunca perde a noção dos movimentos dos bichos, e, acaso um deles ameace tresmalhar-se, desperta das suas contemplações e acorre a corrigir-lhe o rumo.”
É sobre a região mais pobre de Portugal que nos fala “Jénifer, ou a princesa da França: As ilhas (realmente) desconhecidas”, o mais novo “retrato” da colecção da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Sobre pobreza, porventura extrema, mas também sobre abandono escolar, exclusão, droga e abusos sexuais. A protagonista desta história é Jenifer, uma menina quase a fazer onze anos, que passa o tempo sentada no muro de cimento que ladeia a estrada junto ao bairro social onde vive. Uma menina inteligente, reservada mas de resposta pronta, que sonha ser “unicórnia” (bailarina) ou, talvez, astronauta, baleeira ou bióloga marinha. Vê-se nas pessoas que gostaria de ser, a habitar os lugares que acredita que essas pessoas habitam, mesmo sabendo ser de areia solta a montanha de sonhos com que alimenta o passar dos seus dias. Afinal, uma menina que vive num verdadeiro paraíso para aqueles que têm posses, mas que se revela um inferno cruel para os mais pobres e desfavorecidos.
Segundo dados do Eurostat, os Açores são uma das regiões mais pobres da Europa. No arquipélago, a riqueza por habitante, ajustada ao poder de compra, situa-se 25% abaixo da média da União Europeia. Um em cada quatro jovens açorianos entre os 15 e os 34 anos não trabalha nem estuda. O Rendimento de Inserção Social chega a mais de 10% da população (em comparação com os 3% da média nacional de beneficiários) sendo nos Açores que o seu valor é mais baixo, rondando os 86 euros por beneficiário. Joel Neto quis pôr o dedo nesta ferida e nas suas consequências. Fê-lo através de uma reportagem ficcionada, trazendo para primeiro plano uma Jénifer que é, afinal, o somatório de tantas crianças como ela, reféns da lei das probabilidades segundo a qual nascer num bairro social e sobreviver ao parto, escapar a uma violação antes de chegar à idade adulta, de concluir o liceu, de evitar tornar-se alcoólica, de arranjar um emprego e mantê-lo de forma a sustentar com dignidade a sua família é quase um milagre. E que, mesmo assim, não desistem do sonho de virem a ser princesas da França.
“As ilhas (realmente) desconhecidas” não são um roteiro turístico para os mais afoitos ou sedentos de aventura. Não se dão a ver na praia deserta ou na baía de coral, no trilho que só alguns conhecem ou no spot perfeito para apreciar o nascer (ou o pôr) do sol. Dão-se a ver nos bairros sociais reduzidos a guetos, na subsidiação que sustenta toda a economia açoriana - do turismo aos transportes -, nos atestados médicos forjados para justificar faltas à escola, nos desvalidos em volta da carrinha da metadona, nos carros de alta cilindrada que percorrem os bairros ao anoitecer, nos boletins de voto fotografados, garante de mais um ano de “Resí”. Assertivo, frontal, corajoso, determinado na obrigação de denunciar os meandros duma realidade que conhece bem, Joel Neto oferece-nos um libelo fortíssimo contra as injustiças e as desigualdades que se abatem sobre uma parte significativa da população açoriana. Fá-lo ao seu estilo, numa escrita que lhe reconhecemos belíssima, falando pela voz de uma criança cuja inocência, como veremos, já se perdeu. Um livro obrigatório.
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