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domingo, 17 de setembro de 2023

PERFORMANCE: "Os Surrealistas" | Lisbon Poetry Orchestra



PERFORMANCE: “Os Surrealistas”
Lisbon Poetry Orchestra
Com | Nuno Miguel Guedes (voz), José Anjos (voz), Paula Cortes (voz), Alexandre Cortez (baixo eléctrico, teclados), Mário João Santos (bateria, percussões), Luís Bastos (saxofone, clarinete), Filipe Valentim (teclados), Sérgio Costa (guitarra eléctrica)
Festival Literário de Ovar FLO 2023
Centro de Arte de Ovar
16 Set 2023 | sab | 22:30


“Lisboa, 1949. A capital portuguesa vive num cinzento palha, reflexo triste do resto do país. A ditadura ataca sem ter medo. A polícia política está por toda a parte, insidiosa, rasteira. As suas ordens são simples: Calar, proibir, prender. Ainda assim há marcas de cor. Lisboa vive o cosmopolitismo forçado dado pelos refugiados de guerra que se juntam num país supostamente neutro. E é neste ambiente que vamos encontrar os nossos heróis. Imaginemos um café lisboeta, frequentado por todo o tipo de gente: Rufias, poetas, espiões, dândis, prostitutas, toda uma fauna colorida. Ali, naquele canto, está um grupo de jovens que se juntam em nome de uma palavra que lhe é sagrada: Liberdade. Chamaram-lhes os surrealistas.”

Foi com “Os Surrealistas”, o seu mais recente trabalho, que a Lisbon Poetry Orchestra se apresentou na noite de ontem no Centro de Arte de Ovar. A identificação do grupo com a matriz surrealista - contestária e provocadora, desassombrada e imensamente livre - fez do espectáculo um exercício de maravilhosa subversão e de exaltação da poesia. Intenso e inebriante, inquietante e provocador, o poema foi imperativo e chamada geral, veneno e país, cidade e navio de espelhos. Viagem pela obra de alguns dos mais ilustres representantes do movimento surrealista - Alexandre O’Neill, António José Forte, António Maria Lisboa, Carlos Eurico da Costa, Fernando Lemos, Mário Cesariny, Mário-Henrique Leiria e Pedro Oom - “Os Surrealistas” pôs a tónica na palavra, à qual soube acrescentar a música e a imagem, em composições de singular beleza e fascínio. Em estreita simbiose, o público deixou-se contaminar por atmosfera tão atractiva quanto absorvente e, quase sem dar por isso, fez parte da trama e (também) surrealizou.

Entre o estranhar e o entranhar foi tempo de dois poemas (e a adesão só não foi imediata porque a música demasiado alta fez com que nem sempre a palavra fosse perceptível, retardando o processo). Ainda assim, foi possível perceber no poema de abertura, com assinatura de Mário Cesariny, a urgência da sua mensagem: “é preciso correr é preciso ligar é preciso sorrir é preciso suor / é preciso ser livre é preciso ser fácil é preciso a roda o fogo-de-artifício”. De António José Forte seguiu-se “Reservado ao Veneno” e as dúvidas, se as havia, tornaram-se, em definitivo, certezas. Os versos modelados na música (ou o seu contrário), rima e ritmo aconchegados numa indisfarçável cumplicidade, os sentidos da palavra afeiçoados às cores da voz, concorriam em uníssono para a construção de harmoniosas atmosferas e de delicados matizes musicais intrínsecos ao poema. Na tela, o extraordinário trabalho pictórico de João Alves e as animações de Ruca Bourbon iam pontuando a palavra e a música, desfilando em arte e magia ante o olhar de admiração do público.

Numa altura em que celebramos o centenário do nascimento de Mário Cesariny, do poeta escutámos “O Navio dos Espelhos”, “You Are Welcome to Elsinore” e “No País”, poemas que desmontam as convenções institucionais e se abrem ao ouvinte (ao leitor) em ousada frontalidade e em mordacidade feroz. “Entre nós e as palavras há perfis ardentes / espaços cheios de gente de costas /altas flores venenosas portas por abrir / e escadas e ponteiros e crianças sentadas / à espera do seu tempo e do seu precipício”. “A Cidade de Palaguim”, de Carlos Eurico da Costa, com a sua “gente a beber sofregamente / a água dos esgotos e das poças” e o seu “corpo de bombeiros / que lançava nas chamas gasolina” foi um dos momentos mais altos da performance, a par de “O Poema Pouco Original do Medo”, de Alexandre O’Neill, e do monumental “Chamada Geral”, de Mário-Henrique Leiria. O tom surrealizante estendeu-se aos “Poetas Portugueses de Agora”, título do trabalho de estreia da Lisbon Poetry Orchestra, com a poesia de Cláudia R. Sampaio e de Daniel Jonas, antes de Pedro Oom encerrar a noite com “Pode-se Escrever”: “Pode-se escrever nada / Pode-se escrever com nada / Pode-se escrever sem nada / Pode-se não escrever”. Uma noite memorável.

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