LIVRO: “Tantas Palavras”,
de Chico Buarque
Reportagem biográfica | Humberto Werneck
Ed. Companhia das Letras, Novembro 2018 (1ª republicação, Maio 2019)
“Sou Ana de vinte minutos
Sou Ana da brasa dos brutos na coxa
Que apaga charutos
Sou Ana dos dentes rangendo
E dos olhos enxutos
Até amanhã, sou Ana
Das marcas, das macas, das vacas, das pratas,
Sou Ana de Amsterdam”
“Tantas Palavras” é “todas as letras” e é, também, uma belíssima e bem humorada crónica, através da qual Humberto Werneck nos dá a ver muito do que foi e é Chico Buarque, sobretudo enquanto compositor e cantor. Começando pela parte biográfica, que abre o livro e se estende até à página 134, diria que ela é suficientemente “aligeirada” para poder ser tomada à letra (e daí, talvez, o recurso à designação de “reportagem biográfica”), mas consistente o bastante para ficarmos com uma ideia clara do viver e do sentir do cantor e de que forma isso se viu reflectido nas suas músicas. Daquilo a que Chico Buarque apelidou de “pré-história musical”, aos anos mais recentes e à viagem ao território correspondente à antiga República Democrática Alemã, onde conheceu a família do seu meio-irmão, Werneck explora todo um manancial de histórias de vida intensa e livre, narradas com a preocupação de se mostrarem na ligação às letras das músicas, muitas delas sobejamente conhecidas e que, como o leitor descobrirá, assentam em assuntos bem mais reais do que poderíamos imaginar.
“Tem mais samba no encontro que na espera / Tem mais samba a maldade que a ferida / Tem mais samba no porto que na vela / Tem mais samba o perdão que a despedida.” Os versos pertencem ao tema “Tem Mais Samba”, o primeiro a ser inscrito na extensa recolha que ocupa as restantes 360 páginas do livro. As letras encontram-se organizadas por ordem cronológica e foram inscritas por ordem alfabética dentro de cada ano. Esta, da qual retirei os quatro versos iniciais, foi escrita em 1964 - Chico tinha então 20 anos -, mas somente publicada em 1966 integrando o primeiro álbum do cantor, “Chico Buarque de Hollanda”. Sobre ela, sabemos apenas que foi composta num violão AeroWillys 1961 que o cantor baptizou de “Nelson”. Aliás, Chico adorava dar nomes de pessoas às suas coisas e, assim, o gira-discos era “Ivone”, o gravador “Alcântara”, o frigorífico “Frida” e “Julieta” o violão com o qual compôs “A Banda”. As suas peculiaridades, porém, não se ficam por aqui e, entre as peripécias que marcaram a sua infância e juventude, fica para a posteridade a primeira aparição de Chico Buarque nos jornais, não na secção cultural, antes nos casos de polícia do Jornal “Último Hora”, de S. Paulo, em artigo intitulado “Pivetes Furtaram um Carro: Presos”.
Viajar ao longo de mais de meio século de canções é uma delícia. São 336 temas que se oferecem em desafio, pedindo ao leitor que associe a cada letra a musica respectiva. Há aquelas que são imediatas - “Pedro Pedreiro”, “Meu Caro Amigo”, “Cálice”, “Construção”, “Deus lhe Pague”, “Mulheres de Atenas”, “O Que Será” ou “Partido Alto”. Outras há que associamos com facilidade a um cantor que não Chico Buarque, sendo “Ciranda da Bailarina” o caso mais flagrante, certo que estava que era obra de Adriana Calcanhotto. Muitas das letras vêm associadas a outros autores, entre os quais se destacam Edu Lobo, Toquinho, Tom Jobim, Francis Hime, Ruy Guerra ou Vinicius de Moraes. Por lá passam, ainda, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Pablo Milanés ou Silvio Rodrigues e onde Sérgio Godinho tem uma singular aparição com “Um Tempo Que Passou”. Lá está a Ditadura Militar e um fortíssimo “Hino de Duran (Hino da Repressão)” e um abraço a uma “Morena de Angola”, lá está a paródia que é “Carta ao Tom” e um pungente “Levantados do Chão”, lá está o “Fado Tropical” (com a palavra “sífilis” vetada pela censura) e esse incontornável “Tanto Mar”, verdadeiro hino ao 25 de Abril. Lá está (lá estão) “Tantas Palavras”.
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