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terça-feira, 12 de setembro de 2023

LIVRO: "Cinco Reis de Gente"



LIVRO: “Cinco Reis de Gente”,
de Aquilino Ribeiro
Ed. Bertrand Editora, 1985


“ – Deixá-lo ir, aonde? À escola...? E o menino a dar-lhe e a burra a fugir. A escola, já lhe disse, é boa para os ricos. Aos pobres só serve para atrasar e roubar tempo. Com que sim, queria-me o rapaz na mestra...?! O que queria, bem eu sei, era um companheiro para a pândega. E quem mo há-de manter? Quem me vai ao molho da lenha para eu poder esquentar o forno, e desta, daquela, da sua mãezinha, ganhar a bola com que nos sustentamos?! Não que o meu homem já não pode! Agora para o que está bom é para calço de panela. Coitadinho, enquanto teve forças, trabucou...”

Sessenta anos após a morte de Aquilino Ribeiro, lanço um primeiro olhar sobre a obra do escritor multifacetado, a quem Óscar Lopes se referiu como tendo partilhado com Fernando Pessoa “o primado das Letras portuguesas do século XX”. Tenho presente as vezes que li aos meus filhos o “Romance da Raposa”, mas já não estou tão certo de alguma vez ter lido “O Malhadinhas” ou “A Casa Grande de Romarigães”. Mas como nunca é tarde para começar, comecei precisamente por este “Cinco Reis de Gente”, memória dos primeiros anos de vida de Aquilino, no qual nos dá a ver a sua Beira natal e, em particular, a vila de Sernancelhe, onde se centra a acção de muitas das suas obras. Retratando paisagens e personagens que lhe são queridas, o autor parte de episódios resgatados às memórias de infância e constrói um retrato pitoresco do Portugal de finais da monarquia, recheando-o de peripécias onde o etnográfico, o social, o antropológico e o político se revelam numa dimensão com tanto de realista como de fantasioso.

O medo do escuro, a tia com a cara picada das bexigas, ensalmos contra as quebraduras, subir aos ciprestes à cata de ovos nos ninhos, a caça às rãs ou às libelinhas, os devotos do Calvário a percorrer a Via Sacra pela Quaresma, as idas à escola, a lida da casa ou das leiras, as cantilenas, provérbios e esconjuros de pé quebrado, os olhares indiscretos ou as tropelias, de tudo um pouco “Cinco Reis de Gente” se faz, num verdadeiro hino à vida e à relação entre o homem e a natureza. Profundo conhecedor do meio rural, Aquilino Ribeiro desenvolve neste seu livro um conjunto de interpretações e de paradigmas que expõem com clareza o viver num espaço conhecido por Serra de Leomil, na parte norte do distrito de Viseu. Moldadas pelo próprio espaço, as pessoas mostram-se com tanto de constância e tenacidade como de tacanhez, casmurrice e primitivismo. O automóvel ou a electricidade são ainda uma miragem e a escola não está no topo das prioridades, num tempo em que o analfabetismo atingia três quartos da população portuguesa.

Repositório de cultura e de genuinidade, “Cinco Reis de Gente” lê-se com admiração e prazer. Nele encontramos um léxico do qual chegam ressonâncias imprecisas aos nossos dias e que impressiona pela sua variedade e riqueza. Necessário se torna ter o dicionário à mão para saber o que significa gatázio, xisgaravis, gerifalte, esquipação, tintamarresco, burundanga ou escalracho, que animal é um caçapo ou um argalho, que fruto é um mostajo. “De gorra com os púrrios”, “ensaiar um cambapé”, “nem lá vou, nem faço míngua” ou “à laia de bioco” são alguns dos aforismos e ditos populares em que navegamos neste mar literário de diversidade e encanto. Um mar de liberdade, também, porque livre se mostra o narrador na sua inocência e candura, porque livre é o seu espírito e porque o exercício da liberdade é marca indelével do seu carácter. “Precisava de ar livre, de largar pelos cerros, de descobrir terra, como dos carinhos de minha mãe.” Um livro incontornável de um autor que nos tempos mais próximos irá merecer a minha maior atenção.

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