TEATRO: “As Areias do Imperador”
A partir do romance de Mia Couto
Adaptação e encenação | Victor de Oliveira
Cenografia | Margaux Nessi
Figurinos e adereços | Sara Machado
Interpretação | Ana Magaia, Bruno Huca, Daniel Pinto, Elliot Alex, Eunice Mandlate,Gracinda Nave, Horácio Guiambe, Isabelle Cagnat, Josefina Massango, Lucrécia Paco, Klemente Tsamba, Mário santos, Miguel Moreira, Miguel Nunes, Sufaida Moyane, Victor de Oliveira
Produção | Teatro Nacional de São João
210 Minutos | Maiores de 16 anos
Teatro Aveirense
09 Set 2023 | sab | 21:00
“Todas as manhãs se erguiam sete sóis sobre a planície de Inharrime. Nesses tempos, o firmamento era bem maior e nele cabiam todos os astros, os vivos e os que morreram. Nua como havia dormido, a nossa mãe saía de casa com uma peneira na mão. Ia escolher o melhor dos sóis. Com a peneira recolhia as restantes seis estrelas e trazia-as para a aldeia. Enterrava-as junto à termiteira, por trás da nossa casa. Aquele era o nosso cemitério de criaturas celestiais. (…) Certa vez, já a manhã peneirada, uma bota pisou o Sol, esse Sol que a mãe havia eleito. Era uma bota militar, igual à que os portugueses usavam. Desta vez, porém, quem a trazia calçada era um soldado Nguni. O soldado vinha a mando do imperador Ngungunyane. Os imperadores têm fome de terra e os seus soldados são bocas devorando nações. Aquela bota quebrou o Sol em mil estilhaços. E o dia ficou escuro. Os restantes dias também. Os sete sóis morriam debaixo das botas dos militares. A nossa terra estava a ser abocanhada. Sem estrelas para alimentar os nossos sonhos, nós aprendíamos a ser pobres. E nos perdíamos da eternidade. Sabendo que a eternidade é apenas o outro nome da Vida.”
Mia Couto, in “Mulheres de Cinza”
Novembro de 1894. O sargento Germano de Melo chega a Moçambique com a missão de capitanear o posto de Nkokolani, na fronteira com o chamado Estado de Gaza. De um lado, as Terras da Coroa, onde governa um monarca que nenhum africano haveria algum dia de conhecer; do outro, os VaNguni, comandados por Ngungunyane, que têm no Sul um reduto militar e político de combate ao poder colonial português. Já em Nkokolani, o sargento encontrará Imani Tsembe, jovem moçambicana que se oferece como serviçal e com quem terá um relacionamento amoroso. Entretanto, a guerra vai conhecer novos contornos, acabando as tropas do capitão Mouzinho de Albuquerque por capturar Ngungunyane na aldeia de Chaimite. Está garantida a soberania da coroa. Condenado ao exílio e enviado para o continente na companhia das suas mulheres e de alguns dos seus dignitários, o Leão de Gaza seguirá para a Ilha Terceira onde morrerá após onze anos de desterro.
Baseado na “trilogia moçambicana” do escritor Mia Couto – “Mulheres de Cinza”, “A Espada e a Azagaia” e “O Bebedor de Horizontes” –, “As Areias do Imperador” constitui um fresco vibrante e poderoso sobre um particular momento da história de Moçambique. Pelas vozes dos agressores ou das vítimas, ao longo de três horas e meia vão sendo narrados o absurdo e as incongruências de uma guerra baseada na soberba e na ganância, longe da vista dos senhores que tudo podem e tudo mandam, contra populações pouco mais do que indefesas, privadas dos seus bens, feridas na sua dignidade e sujeitas a todo o tipo de humilhações. Das estrelas que alimentam os sonhos, aos imperadores com fome de terra, “os seus soldados como bocas devorando nações”, Moçambique é terra mártir, flagelada pela guerra e pela fome, terra de uns poucos para desespero de tantos. Terra de muita beleza mas poucas certezas, onde um poente glorioso é da cor do sangue derramado por milhares e milhares dos seus filhos.
Sai-se da peça com a sensação agridoce de se ter passado ao lado de um extraordinário momento de teatro. A cuidada recriação de ambientes, o primor cénico de certos quadros, a reconstituição das tradições, a riqueza dos figurinos ou a beleza da língua, encontram paralelo na qualidade interpretativa dos actores moçambicanos, irrepreensíveis na entrega, inatacáveis na sua verdade (extraordinárias as representações de Sufaida Moyane e de Klemente Tsamba, nos papéis de Imani e Ngungunyane, respectivamente). Porém, há aspectos que se revestem de um primarismo inexplicável, que desviam o foco do que é essencial e se perdem em devaneios num apontamento de vídeo, nas notas de um piano, no vazio de um adereço. As indispensáveis legendas fazem com que muito do que se passa em palco se perca. Há, enfim, o excessivo tempo de duração da peça, a provar que o bom é inimigo do óptimo.
[Foto: Teatro Nacional de São João | www.tnsj.pt]
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