LIVRO: “A Vida no Campo”,
de Joel Neto
Ed. Marcador Editora, Maio de 2016
“(...) De resto, há que reunir um
pacote de manteiga, duas colheres de banha, dois repolhos grandes e
os suspeitos do costume: três cebolas, duas folhas de louro e uma
dúzia de bagas de pimenta-da-jamaica. Se ninguém estiver a olhar,
pode-se lançar mão de um cubo de caldo de carne. Mas o essencial é
dispor de um copo de vinho branco (Verdelho, daí não dá para
fugir) e de uma concha do molho de uma alcatra prévia.”
Quando, há duas décadas atrás, a
minha sobrinha pretendeu adquirir a nacionalidade suiça, foi
convidada a prestar provas na Mairie de Lausanne. Aí, entre as
várias questões colocadas para medir o seu grau de aptidão para a
cidadania daquele país, estava a receita do Papet au Poireau, o
prato mais representativo do Cantão de Vaud. Sou daqueles que
acreditam ser a gastronomia um importante factor de diferenciação
social e um valioso elemento para a educação para a inclusão. Se
falo nisto a propósito de “A Vida no Campo” é porque muito me
sensibilizou ver Joel Neto, a par dos relatos em torno “da sua
horta e do seu pomar, do seu jardim de azáleas e de uma panóplia de
vizinhos de modos simples e vocação filosófica”, falar detalhadamente do que de
mais tradicional encontramos na Ilha Terceira em matéria de comida
e, mais do que isso, deixar-nos com água na boca à conta de uma Sopa do Espírito Santo ou de uma Alcatra, de uma
Dona Amélia ou de uma Sopa Azeda (ou Caldo Temperado).
Tomando a forma de um diário, entre
Lisboa e o Lugar dos Dois Caminhos, freguesia da Terra Chã, ilha
Terceira, as estações do ano a pontuarem os ciclos naturais, “A
Vida no Campo” devolve-nos o viver e o sentir de Joel Neto ao longo
de um ano. Convocando histórias e memórias ou, simplesmente,
observando e descrevendo o que se passa à sua volta, o autor abre uma janela sobre
o campo, desmistificando uma certa visão romântica que dele se
possa ter. É que se o campo tem as suas virtudes e a sua evocação
pode tomar a forma de um poema, nele encontramos também o que de
pior pode haver no ser humano. Este é, aliás, o grande mérito do
escritor: não ceder à tentação de fazer comparações, recusando
essa contabilidade estéril onde campo e cidade se assumem como
colunas de deve e haver. Para além, naturalmente, de prestar uma bela homenagem aos Açores e aos açorianos com este seu livro.
Ao longo de mais de duas centenas de páginas, o autor
leva-nos pelos caminhos da religião e da mitologia, do folclore e
dos saberes. Por seu intermédio, ficamos a saber que Açores e aves de
rapina não são, aqui, faces da mesma moeda. Com ele ouvimos ecoar o
“Semper Fidelis” no velhinho Municipal de Angra em tardes de
futebol, desfilamos em noite de São João, subimos os níveis de
adrenalina numa tourada à corda e aprendemos a escutar o vento.
Também aprendemos que o “Almanaque do Camponez” precedeu numa
duzia de anos o “Borda d'Água”, que andar de urbana era uma
inevitabilidade, que os Supermercados Guariti são comércio local do bom e que “uma casa de campo nunca está definitivamente
pintada, nem reparada, nem sequer limpa”. Com ele podemos até ir mais
longe, ao encontro de Obulinas e Firmilindos, Gabinos e Unerinas e de toda uma preciosa onomástica graciosense ou perceber que o Marcos matou o
Pedro, não por maldade humana mas pelo poder de um momento. Fica apenas por saber a resposta a essa questão enigmática (embora o Natal ainda venha longe): “O menino mija?”
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