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terça-feira, 28 de janeiro de 2020

LIVRO: "A Vida no Campo"



LIVRO: “A Vida no Campo”,
de Joel Neto
Ed. Marcador Editora, Maio de 2016


“(...) De resto, há que reunir um pacote de manteiga, duas colheres de banha, dois repolhos grandes e os suspeitos do costume: três cebolas, duas folhas de louro e uma dúzia de bagas de pimenta-da-jamaica. Se ninguém estiver a olhar, pode-se lançar mão de um cubo de caldo de carne. Mas o essencial é dispor de um copo de vinho branco (Verdelho, daí não dá para fugir) e de uma concha do molho de uma alcatra prévia.”

Quando, há duas décadas atrás, a minha sobrinha pretendeu adquirir a nacionalidade suiça, foi convidada a prestar provas na Mairie de Lausanne. Aí, entre as várias questões colocadas para medir o seu grau de aptidão para a cidadania daquele país, estava a receita do Papet au Poireau, o prato mais representativo do Cantão de Vaud. Sou daqueles que acreditam ser a gastronomia um importante factor de diferenciação social e um valioso elemento para a educação para a inclusão. Se falo nisto a propósito de “A Vida no Campo” é porque muito me sensibilizou ver Joel Neto, a par dos relatos em torno “da sua horta e do seu pomar, do seu jardim de azáleas e de uma panóplia de vizinhos de modos simples e vocação filosófica”, falar detalhadamente do que de mais tradicional encontramos na Ilha Terceira em matéria de comida e, mais do que isso, deixar-nos com água na boca à conta de uma Sopa do Espírito Santo ou de uma Alcatra, de uma Dona Amélia ou de uma Sopa Azeda (ou Caldo Temperado).

Tomando a forma de um diário, entre Lisboa e o Lugar dos Dois Caminhos, freguesia da Terra Chã, ilha Terceira, as estações do ano a pontuarem os ciclos naturais, “A Vida no Campo” devolve-nos o viver e o sentir de Joel Neto ao longo de um ano. Convocando histórias e memórias ou, simplesmente, observando e descrevendo o que se passa à sua volta, o autor abre uma janela sobre o campo, desmistificando uma certa visão romântica que dele se possa ter. É que se o campo tem as suas virtudes e a sua evocação pode tomar a forma de um poema, nele encontramos também o que de pior pode haver no ser humano. Este é, aliás, o grande mérito do escritor: não ceder à tentação de fazer comparações, recusando essa contabilidade estéril onde campo e cidade se assumem como colunas de deve e haver. Para além, naturalmente, de prestar uma bela homenagem aos Açores e aos açorianos com este seu livro.

Ao longo de mais de duas centenas de páginas, o autor leva-nos pelos caminhos da religião e da mitologia, do folclore e dos saberes. Por seu intermédio, ficamos a saber que Açores e aves de rapina não são, aqui, faces da mesma moeda. Com ele ouvimos ecoar o “Semper Fidelis” no velhinho Municipal de Angra em tardes de futebol, desfilamos em noite de São João, subimos os níveis de adrenalina numa tourada à corda e aprendemos a escutar o vento. Também aprendemos que o “Almanaque do Camponez” precedeu numa duzia de anos o “Borda d'Água”, que andar de urbana era uma inevitabilidade, que os Supermercados Guariti são comércio local do bom e que uma casa de campo nunca está definitivamente pintada, nem reparada, nem sequer limpa. Com ele podemos até ir mais longe, ao encontro de Obulinas e Firmilindos, Gabinos e Unerinas e de toda uma preciosa onomástica graciosense ou perceber que o Marcos matou o Pedro, não por maldade humana mas pelo poder de um momento. Fica apenas por saber a resposta a essa questão enigmática (embora o Natal ainda venha longe): “O menino mija?”

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