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sexta-feira, 31 de março de 2023

CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #70



CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #70
Escola de Artes e Ofícios
135 Minutos | Maiores de 14 anos
30 Mar 2023 | qui | 21:30


A noite de ontem foi de emoções na Escola de Artes e Ofícios. A 70ª sessão do Shortcutz Ovar trazia com ela a certeza de “Ice Merchants”, de João Gonzalez - a curta-metragem de animação que fez história ao tornar-se no primeiro filme português a concorrer directamente aos Óscares da Academia de Hollywood -, e esse terá sido o “gatilho” para que até os menos familiarizados com estas andanças corressem em busca de um ingresso. A sala encheu “que nem o Estádio da Luz em dia de jogo do Benfica”, de tal forma que, em matéria de sessões regulares do certame ovarense, esta terá batido todos os recordes de presença de público, transformando-se numa significativa jornada de celebração do cinema português. Mas o programador quis ir mais além, acrescentando à sessão dois filmes igualmente impactantes. Complemento perfeito a “Ice Merchants”, “Pê” de Margarida Vila-Nova e “Boca Cava Terra” de Luís Campos, protagonizaram momentos de grande intensidade e qualidade, chamando a si igual fatia de atenção, carinho e aplauso do público.

A paternidade e as questões a ela ligadas poderão ser entendidas como denominadores comuns das três obras apresentadas. A forma como as histórias convergem num ponto de transição entre um passado do qual já nada podemos esperar e um futuro que se abre em caminhos de mudança (e de esperança), oferece uma fortíssima unidade narrativa aos três filmes, tornando-os partes de um todo, simultaneamente sujeitos e complementos de um filme maior ao qual poderíamos chamar “Vida”. A quase ausência de diálogos compensada pela delicadeza de um gesto ou pela expressividade de um olhar, o papel da mãe “que-não-está-mas-está” e o seu legado na relação pai / filho(a) ou as memórias afectivas que um simples objecto pode despoletar, juntam-se ao cuidado, sensibilidade e subtileza na arte de contar uma história, dificultando a tarefa de dissociar ou distinguir um filme dos outros. Prova disto é a hesitação e a inquietação que me acometeram na hora de atribuir uma nota aos filmes da sessão.

A carga emocional que se desprende do olhar da pequena Alice Patrocínio é o grande trunfo de “Boca Cava Terra”, filme de Luís Campos que abriu a sessão. Como frisou uma espectadora, a menina “sem dizer nada, diz tudo”, cavando com o olhar as diferenças nas relações de género, nas ligações afectivas, no corte entre passado e futuro. “Pê”, filme de estreia de Margarida Vila-Nova enquanto realizadora, vive também de um desempenho enorme, no caso de Adriano Luz no papel de um homem que enfrenta um cancro e vê o fim aproximar-se. Com uma tremenda carga autobiográfica, o filme baseia-se numa carta de catorze páginas deixada em jeito de despedida e representa uma emotiva homenagem de uma filha ao seu pai. “Ice Merchants” fechou a sessão da melhor forma, mostrando o porquê de ser um dos cinco eleitos da Academia para disputar o prémio de Melhor Curta-Metragem de Animação. A uma história muito simples - a de um homem e do seu filho que, “da sua casa fria e vertiginosa presa no alto de um precipício”, saltam todos os dias de pára-quedas para irem à aldeia vender gelo -, junta-se a beleza da animação, tornando o filme numa fábula que nos vem dizer que há coisas que julgávamos perdidas mas que, no momento certo, se tornam presentes para nos amparar. Um filme - e uma sessão - de se lhe tirar o chapéu.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

CINEMA: Shortcutz Ovar 2020 | Sessão #41



CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #41
Escola de Artes e Ofícios
90 Minutos | Maiores de 16 anos
15 Out 2020 | qui | 22:00


Circularidade. Linearidade. Infinito. Espaço, espaço, espaço. E tempo. E gente. A forma como as pessoas se relacionam com o espaço e o tempo foi, de um ponto de vista conceptual, o elemento aglutinador da 41ª sessão do Shortcutz Ovar, levada ao ecrã da Escola de Artes e Ofícios na noite de ontem e perante uma moldura humana, sólida amálgama de entusiasmo e resiliência, deveras significativa. Habitual moderador destas sessões, Tiago Alves fez questão de vincar isso mesmo, saudando aqueles que, em tempos de indefinição e incerteza, teimam em seguir de braço dado com as artes, em sair de casa e, responsavelmente, em ocupar as cadeiras das salas, dando sentido a todo um esforçado trabalho de programação e organização e alimentando o querer e os sonhos de todos quantos vivem de e para a cultura.

Nestor. É este o nome da personagem que dá título ao primeiro filme da noite, uma curta de animação já apresentada em finais do ano passado no Cinanima, onde foi galardoada com o Prémio António Gaio para Melhor Filme (competição nacional). Com realização, animação e montagem de João Gonzalez, “Nestor” é o resultado do projecto final do primeiro ano de mestrado em animação no Royal College of Art de Londres e dá-nos a conhecer o solitário habitante de um barco no meio do oceano e as suas obsessões pela arrumação e pela ordem face aos constantes abanões a que a sua casa é sujeita. Com um forte sentido metafórico entre a oscilação do mar e a instabilidade do quotidiano, o filme é ritmado por uma música também ela obsessiva, da autoria do próprio João Gonzalez, induzindo no espectador um estado de tensão emocional que o leva a confrontar-se com o seu eu. Magníficos os cartões animados, com uma forte componente esquemática e que acentuam o carácter obsessivo-compulsivo da personagem. 
 
Ellen. Assim se chama a solitária protagonista de “Ursula”, terceira curta-metragem de Eduardo Brito, filmada entre Longyearbyen, no arquipélago norueguês de Svalbard, para lá do Círculo Polar Ártico, e a praia de S. Jacinto, espécie de “finisterra” portuguesa, abraçada pelo mar e pela Ria de Aveiro. Valorizando, em partes iguais, o texto e a fotografia, Brito oferece-nos um olhar delicado e sensível sobre este planeta que habitamos, no preciso ponto onde a estrada acaba e se torna impossível ir mais além. Filmado em condições profundamente adversas, em parte sob os rigores do Inverno Ártico, este é um filme contemplativo, de uma enorme beleza, criando no espectador a ilusão de estar próximo do sonho, apanágio e razão de ser do próprio cinema. Com montagem e produção de Rodrigo Areias, “Ursula” seguiu um curioso processo criativo, as palavras a surgirem das imagens, sem guião prévio, sem balizas nem guardas, aberto e livre. Na imensidão dos espaços, fustigada pelo vento e pelo frio, Ellen é, tal como as palavras, a guardiã do tempo e da sua marcha inexorável.

Mário. É este o nome do solitário faroleiro numa recôndita ponta das Flores, no arquipélago dos Açores. Ali, no espaço concentracionário de uma ilha, tendo apenas um gato e uma vaca por companhia, o sentir da passagem do tempo parece ser mais pesado, o isolamento torna-se quase sufocante. No seu ideal de circularidade, o farol lá está para nos lembrar que a cada dia se sucede outro. E outro. E outro... Misto de documentário e ficção, “Há Alguém na Terra” é uma produção da Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa e dá-nos a ver o trabalho de Francisca Magalhães, Joana Tato Borges e Maria Canela, três jovens realizadoras que não escondem o seu fascínio pela natureza e decidem partir em busca de respostas para a eterna questão: “Porque estamos aqui?”. “Engolidas” pela identidade florentina e pela profunda comunhão do homem com o lugar que habita, as autoras traçam um retrato pungente dos ciclos da vida e da solidão que se oferece num abraço que é prenúncio de fim. Só a luz ofuscante do farol teima em alumiar os passos em volta. Sempre os mesmos.