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sexta-feira, 12 de abril de 2024

TERTÚLIA LITERÁRIA: “Conversas às 5” | Isabel Rio Novo



TERTÚLIA LITERÁRIA: “Conversas às 5”,
com Isabel Rio Novo
Moderação | Joaquim Margarido Macedo
Centro de Reabilitação do Norte
10 Abr 2024 | qua | 17:00


Quase a festejarem três anos de existência, as “Conversas às 5” acolheram a escritora Isabel Rio Novo para a segunda sessão desta quarta temporada, a décima quarta desde o seu início. Numa altura em que se aguarda com expectativa a chegada às bancas da biografia de Luís Vaz de Camões, trabalho que a ocupou nos últimos cinco anos, a escritora trouxe-nos um mundo pessoal onde cabem a paixão pelos livros construída desde tenra idade, o fascínio pelo passado, o apego da História, o gosto pelas viagens, mas também a sua experiência como doente e como acompanhante, as batalhas pessoais contra a doença a contarem histórias de coragem e superação e a abrirem espaço à escrita. Com “casa cheia”, foi uma sessão marcada por momentos de grande intimidade e partilha, pela enorme bondade e generosidade de Isabel Rio Novo nas várias abordagens à sua vida e obra e, sobretudo, pela cumplicidade com os muitos doentes presentes na sessão, todos eles empenhados em vencer a doença e encontrando em iniciativas como esta um complemento importante ao seu processo de reabilitação.

Em dia de celebração dos 100 episódios do podcast “Na Poesia Cabem Todas as Cores” [AQUI], a “repetente” Isabel Marcolino assumiu a leitura de alguns excertos dos livros de Isabel Rio Novo e a conversa fluiu em torno das histórias que se abrem ao leitor, do processo de escrita e da forma como a ficção vai “beber” ao real, das peculiaridades de um nome, um lugar, um episódio. Sobre o seu primeiro romance, “Rio do Esquecimento” (2016, Finalista do Prémio Leya e semifinalista do Prémio Oceanos), a escritora lembrou o vasto lapso de tempo que decorreu entre o início da escrita e a publicação do livro, o diagnóstico e tratamento de um cancro de permeio, a admissão da possibilidade de poder ser este “um testamento literário” e, talvez por isso, se revele, no conjunto da sua obra, “mais frio, mais cerebral” do que os romances subsequentes. “A Febre das Almas Sensíveis”, romance de 2018 e igualmente finalista do Prémio LeYa, traz com ele a importância das pessoas e dos momentos que servem de inspiração à narrativa, mas também dos lugares, já não aqueles que terão sido há muitas décadas, mas que conservam ainda essa atmosfera de grandeza e mistério tão valiosa para a construção da ficção, como são, neste caso, os Sanatórios do Caramulo.

Se o doutoramento em literatura comparada fez com que Isabel Rio Novo se deslocasse a Paris por variadíssimas vezes, esse apego à cidade-luz acabaria por levá-la a descobrir Gustave Caillebotte e a pintura deste que é uma figura pouco conhecida do período Impressionista, ponto de partida para a escrita do romance “Rua de Paris em Dia de Chuva” (2020, finalista do Prémio Europeu de Literatura e do Prémio de Narrativa do PEN Clube). Já Madalena (2022, Prémio Literário João Gaspar Simões) é o romance que “tem mais directamente a ver com a experiência da doença”, e cuja primeira versão funcionou como “uma espécie de diário”. E há, ainda, “O Poço e a Estrada”, uma biografia de Agustina Bessa-Luís, publicada em 2019 e que começou por deixar a escritora “assolapada com o convite”. Isabel Rio Novo abraçou o projecto com a determinação de quem faz da empatia a base para se escrever sobre alguém, sem que isso signifique “concordância absoluta, concordância cega, falta de rigor ou objectividade”. Uma biografia que tem a sua autora a meter-se na história e a ligar as partes, oferecendo à obra um tão saboroso quanto inesperado tom de coloquialidade e de proximidade com o leitor.

Após um período destinado às questões do público, a conversa incidiu sobre a biografia de Luís Vaz de Camões, figura da qual Isabel Rio Novo procura extrair aquilo que é o homem para além do mito, as suas facetas aventureira e romanesca, mas também um Camões culto, sensível para ler de forma adequada um mundo feito de grandezas e misérias e, claro, um escritor enorme. Cartas, sonetos, teatro, um livro em prosa que se perdeu, para além, naturalmente, de “Os Lusíadas”, são fundamentos de uma biografia onde se que cruzam elementos históricos com a obra literária, consolidados no conhecimento da geografia camoniana, com visitas, nomeadamente, a Goa e à Ilha de Moçambique. “Que o livro faça justiça a Luís Vaz de Camões e que os leitores possam empatizar com a figura de um homem que morreu na miséria”, são os votos da escritora em relação a um trabalho de enorme fôlego que está quase a chegar-nos às mãos. Uma palavra final para o 25 de Abril, um momento que “para a escritora, a mulher e a mãe” significa “tudo”. Enunciar as conquistas de Abril ajuda a entender o valor da palavra “tudo”, mas Isabel Rio Novo termina com um alerta: “Nada daquilo que nos foi dado está garantido, dependendo de nós cuidar dos valores alcançados, como quem cuida de uma planta. Espero que daqui a quatrocentos e cinquenta anos possamos estar a festejar o 25 de Abril.”

domingo, 13 de março de 2022

LIVRO: "Madalena"



LIVRO: “Madalena”,
de Isabel Rio Novo
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Publicações Dom Quixote, Fevereiro de 2022


“Quereria ter comigo as cartas de Álvaro Amândio e Madalena Brízida. Algumas já as conhecia de cor. Conhecia-as tão perfeitamente que, deitada na cama da clínica, os olhos desatentos colados às imagens sem som e sem sentido que desfilavam no plasma implantado na parede em frente, duvidava da minha memória e imaginava que era eu quem acrescentava palavras, intenções, sentidos, quem preenchia as entrelinhas, quem escrevia afinal a história dos seus amores e as minudências da sua tragédia.”

Creio ser importante começar por dizer que falar de “Madalena” é falar de cancro da mama. Para mim é, visto ser esse, na justa medida, o assunto de um livro onde se expõe, sem rodeios, a forma como alguém lida com o flagelo da doença. Estamos perante aquele que é o mais comum tipo de cancro entre as mulheres, tendo vitimado mil e oitocentas só no último ano, de um total de sete mil mulheres a quem a doença foi diagnosticada. Na primeira pessoa, Isabel Rio Novo propõe-nos a figura de uma mulher que sucumbe à doença. Uma mulher radiosa, cuja luz vemos apagar-se à medida que atravessa as fases de um processo onde cabem diagnósticos invasivos e dolorosos, cirurgias de grande escala, tratamentos coadjuvantes altamente agressivos, o aprender a viver com as alterações induzidas pela doença, as pressões psicológicas e sociais que vão surgindo e importa ultrapassar. No fim, sem tabus, de forma corajosa e digna, a morte é assumida como o fim de um tempo, uma inevitabilidade para quem vem ao mundo. Seja quem for.

Devo confessar que sinto por Isabel Rio Novo uma enorme admiração. Há na sua escrita uma linguagem que se aprende a reconhecer, feita de um enorme cuidado na abordagem dos sentimentos e de um rigoroso critério na escolha das palavras, o que transforma cada livro seu num exercício de sensibilidade, elegância e bom gosto. No caso de “Madalena”, porém, a autora vai mais longe, acrescentando ao livro a sua própria experiência e as memórias de um tempo em que, também ela, travou uma luta tenaz contra o cancro. Um livro corajoso, pois, com a autora a dar muito de si à personagem, permitindo dizer aquilo que só alguém que viveu a doença pode dizer. É essa verdade que prende o leitor e o ajuda a criar uma invulgar empatia com esta mulher, a entender o seu sofrimento e a ser cúmplice das suas opções, ao mesmo tempo aprendendo a reconhecer novas dimensões no tempo e diversos sentidos na vida.

Não se pense, porém, que “Madalena” é uma espécie de ensaio sobre o cancro da mama ou um qualquer livro de auto-ajuda, desses que vendem meio milhão de exemplares enquanto o diabo esfrega um olho. Frio, frio, frio. É perante literatura da boa que estamos, um romance tecido no melhor que a nossa língua tem para oferecer, consubstanciado no refazer da história dos bisavós da personagem, Álvaro Amândio e Madalena Brízida, através das cartas trocadas entre ambos. Se, por um lado, retiramos um enorme prazer do confronto entre duas épocas tão distintas, o carácter epistolar do livro acrescenta-lhe interesse, sobretudo pela beleza dos trechos, cobertos por uma fina patine romântica mas deixando perceber o quanto as diferenças de género marcaram, intensa e dolorosamente, sucessivas gerações de mulheres. É na busca das semelhanças entre esta Madalena, de “cabelos ruivos, bastos, (…) os olhos claros, o perfil insinuante”, e a sua bisneta, tão diferente de si na aparência mas afinal tão próxima, que partimos, navegando pelas páginas deste livro em sobressalto permanente.

sábado, 30 de maio de 2020

LIVRO: "Rua de Paris em Dia de Chuva"



LIVRO: “Rua de Paris em Dia de Chuva”, 
de Isabel Rio Novo 
Edição | Maria do Rosário Pedreira 
Ed. Publicações Dom Quixote, Março de 2020


“Como bons burgueses, incorporaram-se na pequena multidão de cavalheiros de chapéu alto e sobrecasaca escura e senhoras de chapéus emplumados que cruzavam as galerias. No ar, respirava-se o aroma cálido dos perfumes das mulheres, misturado com o cheiro dos vernizes recentes aplicados nos soalhos. Enquanto Charlotte e Aline mergulhavam as mãos nos cortes de seda e aceitavam experimentar os vidrinhos de perfumes que as empregadas, bonitas e sorridentes nas suas fardas impecáveis, lhes aproximavam do rosto, Auguste discorria sobre os vários motivos que naquele cenário se ofereciam a um pintor: a profusão de objetos, o luxo das roupas, a excitação dos clientes, até aquela empregada ruivita, ali no balcão, parecendo imensamente triste e desamparada por detrás do sorriso e do uniforme.”

Na sua página do facebook, Isabel Rio Novo recordava-nos, há uns dias atrás, o filme “Midnight in Paris”, de Woody Allen. Neste, Gil (Owen Wilson), um bem sucedido escritor de Hollywood, sempre que passeia pela capital francesa à meia noite, é transportado para a Paris de 1920 onde convive com escritores, pintores e outros artistas. “Nada como ter bebido uns copos na véspera com Picasso e Modigliani para se saber exatamente as circunstâncias em que nasceu um quadro”, refere a autora de forma bem humorada, para de seguida nos deixar com a seguinte interrogação: “Terá isto alguma a coisa a ver com o romance que escrevi?”. Lendo “Rua de Paris em Dia de Chuva”, sabemos que é a si própria que a autora dirige a pergunta, da mesma forma que o faz, directa ou indirectamente, ao longo deste seu romance. Um romance com um forte cunho autobiográfico, ao mesmo tempo exercício de escrita e veículo de reflexão sobre o acto da criação artística e, de um modo mais vasto, sobre a vida, no que ela tem de misterioso e belo, mas também de irónico e efémero.

Recuperando o tom do anterior “O Poço e a Estrada” – visão intensa, densa e sensível sobre a vida e a obra de Agustina Bessa-Luís –, “Rua de Paris em Dia de Chuva” oferece-nos um olhar profundamente humano e sensível de Gustave Caillebotte, mecenas dos impressionistas e artista-pintor, nascido em Paris em 1848 e que viria a falecer em Petit Gennevilliers, aos 45 anos, vítima de acidente vascular cerebral. Saltitando entre a Paris oitocentista e o Porto dos dias de hoje, Isabel Rio Novo faz dos pontos de contacto entre a vida do pintor e a sua própria vida o leitmotiv deste seu livro. Para tal, introduz na acção, a par de Caillebotte, duas outras figuras que mais não são do que dois traços vincados do seu próprio “eu”, enquanto mulher e escritora, ser duplicado, razão e coração em permanente diálogo, os caminhos da criação trilhados ao sabor dos caprichos.

Neste olhar sobre o pintor, descobrimos, ainda, o enorme trabalho de pesquisa que se esconde por detrás do livro. A escrita cuidada de Isabel Rio Novo transporta o leitor para os espaços da acção, onde, com enorme realismo, se desvendam as pulsões e matizes da vida e obra de Gustave Caillebotte e se apresentam, com enlevo, os quadros um a um. Convidado a atentar nas cambiantes delicadas, nas perspectivas arrojadas e nos mais ínfimos detalhes, o leitor tenderá a sentir-se levado numa visita guiada, aqui residindo, quiçá, a maior fraqueza do livro. Mas Isabel Rio Novo aceitou correr esse risco. Só assim poderia incitar-nos a raspar ao de leve, com a unha, a superfície de cada tela, pondo a nu as muitas histórias que se escondem sob o dúbio manto das aparências. Só assim a poderíamos descobrir entre a multidão ao longo das ruas de Paris, assistindo a uma regata no porto de Argenteuil ou observando o pintor no meio das dálias no jardim de Petit Gennevilliers. E, reparando com atenção, ao lado de Isabel Rio Novo, estaremos nós, também.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

LIVRO: "O Poço e a Estrada"



LIVRO: “O Poço e a Estrada – Biografia de Agustina Bessa-Luís”, 
de Isabel Rio Novo 
Edição | Rui Couceiro 
Ed. Contraponto Editores, Fevereiro de 2019 


Não deixarei muitos rastos pessoais... Apenas e sobretudo a grande coerência de uma vida romanesca, repleta de situações insólitas, onde coexiste a grande inocente e a grande sedutora que de facto sou...”

Promover ou reforçar a descoberta, a compreensão e o amor pela figura de Agustina Bessa-Luís e pela sua obra, tal é o grande mérito de “O Poço e a Estrada”. Biografia não autorizada com assinatura de Isabel Rio Novo, nela se desvenda, de forma apaixonada, o mundo daquela a quem António José Saraiva se referiu como “a grande revelação, o segundo milagre do século XX português”, logo após Fernando Pessoa. Com humildade e elegância, a autora mostra-se exímia em contornar os escolhos que se levantaram à feitura deste livro e, tal como Agustina, vai descobrindo nas páginas extraordinárias escritas por outros, “um milagre, uma criação do mundo”. A elas junta as suas próprias páginas, nas quais se destacam os testemunhos daqueles que conviveram com Agustina, as visitas aos lugares da escritora e a leitura cuidada da sua vasta obra publicada. Este “artesanato impossível da biografia verdadeira”, encara-o Isabel Rio Novo como o seu grande desígnio e o seu grande desafio. O resultado está à vista e não poderia ser mais intenso e estimulante. 

Uma das facetas mais sedutoras de “O Poço e a Estrada” advém da forma como a autora constrói a narrativa, combinando de forma notável a natureza verídica do relato com a liberdade criativa da ficção. Num misto de zelo e paixão que encanta e comove, Isabel Rio Novo recolhe os “rastos pessoais” possíveis daquela que a si própria se designou como “uma espécie de Dostoievsky” e, abraçando o desígnio de “chamar Agustina”, faz incidir sobre eles as suas qualidades de romancista, oferecendo ao leitor um relato vívido de Agustina, onde o divertido e o sério se elevam como marcas distintivas de uma vida que, em si mesma, encerra “um feixe de contradições”. 

Sabendo reconhecer que “a possibilidade duma realidade é infinita”, a autora quis ver Agustina como uma personagem, como ela pediu que a vissem. Através da pesquisa do coração humano, como ela aconselhou. É assim que Agustina se passeia pelas páginas deste livro, desde o seu nascimento em Vila Meã, no seio de uma família burguesa tradicional ligada à terra, até aos derradeiros dias, tomada pela doença, na Rua do Gólgota, nessa “casa de paredes cor-de-rosa, ocultada por um portão verde, que se abria sobre um jardim belíssimo, com uma vista deslumbrante sobre a barra do Douro e, na outra margem, os barcos atracados ao largo da Afurada.” Pelo meio ficam passagens tão ricas, tão cheias de sons e de cores, como a deliciosa descrição da Póvoa de Varzim nos anos 1930, o tremendo duelo sob a forma de opúsculos com o crítico literário Jaime Brasil, a premiação e a publicação de “A Sibila”, a sólida amizade com Maria Helena Vieira da Silva, a tumultuosa experiência da coisa pública, as antipatias e ódios de estimação que concitou no meio literário ou a profícua colaboração com o cineasta Manoel de Oliveira. 

“Quem esperar encontrar na biografia de um génio a explicação da sua genialidade perde o seu tempo.” Isto sabe Isabel Rio Novo, tal como sabe, melhor que ninguém, que “a vida de Agustina não cabe nos limites cronológicos do seu nascimento e da sua morte”, devendo ser indagada “no futuro da sua obra”. Daí debruçar-se, de forma emotiva, sobre “a relação de Agustina com os seus fantasmas, pessoas da sua família e outros seres da sua convivência, com quem foi travando um diálogo, em quem se inspirou para compor um universo ficcional.” Com enorme sensibilidade, os livros de Agustina sucedem-se e as respectivas personagens vão-se cruzando com as figuras que compuseram o universo da escritora, biógrafa e biografada em comunhão perfeita nesse ofício de misturar e confundir o real e o aparente. Pode o resultado final ser tudo menos linear? Pode. Mas que interessa isso. “Até quando não me interpretam, compreendem-me. Até quando não aderem, aprovam-me”, disse Agustina. 

Agustina pode provocar sentimentos de temor, de controvérsia, de distância também, porque não é à toa que a sua figura pertence à nossa galeria de mitos nacionais e não é evidente chegar-se perto dos mitos sem correr o risco de lhes descobrir a medida da realidade. Isabel Rio Novo mostrou a sua ousadia ao aceitar correr esse risco. Se lhe disser que, graças a “O Poço e a Estrada”, a minha descoberta de Agustina e a compreensão pela sua pessoa são agora maiores, que o amor à sua obra se tornou mais forte ainda, estarei apenas a cumprir um dever de gratidão pela forma admirável como soube pegar na vida de uma das mais geniais e complexas personalidades da literatura em língua portuguesa e engrandecê-la, devolvendo-a sob a forma deste livro. Ela própria biógrafa, Agustina Bessa-Luís ter-se-á furtado a escrever uma autêntica autobiografia. Em contrapartida, afirmou que a melhor biografia seria aquela que fosse feita pelo próprio. Quero crer que a sua opinião não seria a mesma caso tivesse podido ler “O Poço e a Estrada”.

quarta-feira, 28 de março de 2018

LIVRO: "A Febre das Almas Sensíveis"



LIVRO: “A Febre das Almas Sensíveis”,
de Isabel Rio Novo
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Publicações Dom Quixote, Fevereiro de 2018


Quando o propósito é reflectir sobre aquilo que nos legam certos livros, virada que foi a derradeira página, casos há em que importa alguma cautela, não vá a emoção, qual febre, toldar-nos o entendimento. “A Febre das Almas Sensíveis” é um desses livros. Pelo muito que diz e pela forma como o faz. Poderia ser lido de um fôlego, mas naquilo que, de mansinho, vai pondo a nu, no que convoca de dor e coragem, de sofrimento e resignação, de vida e morte, há matéria demasiado substantiva para se dar o leitor a pressas. Numa escrita límpida, pessoas, lugares e coisas são-nos apresentadas com tal dose de exactidão e elegância, que é de coração apertado que vemos colarem-se-nos à pele, página após página, aqueles quadros, unindo-nos agora pelas mesmas causas, animando-nos nas mesmas (pequenas) vitórias, provando-nos impotentes face à mesma miséria, separando-nos dos outros e de nós próprios nas mesmas tragédias.

É curioso perceber como o livro se relaciona com a imagem de capa, “Separação”, pintura de Edvard Munch, um homem que acreditava que as sombras eram a fonte da sua arte. É com linhas suaves, detalhadas, impressivas, mas com uma paleta reduzida aos tons mais sombrios, que Isabel Rio Novo “pinta” este seu livro. Uma pintura feita de camadas e que resulta num quadro tão belo quanto amargo; sobretudo quando vemos que é da tuberculose em Portugal na primeira metade do século passado que nos fala o livro, sendo a “febre das almas sensíveis” apenas um eufemismo para designar esse flagelo que matava 20.000 pessoas a cada ano. E que não se resumia a atingir apenas as “almas sensíveis”, os poetas, antes “era a doença das multidões operárias das cidades, trabalhando mais do que o permitido por lei, amontoadas em mansardas sem esgotos, exaustas e mal alimentadas. (…) Era a doença das sociedades miseráveis. E Portugal era uma sociedade miserável”, conforme pode ler-se a páginas tantas.

Mas voltemos às pinturas, às camadas, às analogias. A mais superficial é precisamente a tuberculose e a forma como marca, de forma brutal, uma família entre tantas outras. Há depois uma segunda camada, justificada por um tempo outro, o tempo presente, onde a figura duma jovem investigadora se mostra determinante para conhecermos, ainda que ao de leve, algumas dessas “almas sensíveis” a que o título alude: Cesário Verde, António Coelho Lousada, Soares de Passos, Júlio Dinis, António Castro Alves, António Nobre, Casimiro de Abreu ou Sebastião da Gama. Mas é precisamente através da jovem investigadora e da transcrição dum manuscrito descoberto no que resta dum sanatório, “Considerações sobre a morte, alinhavadas por R.N.” (de “Reis Novo” / “Rio Novo”) que acedemos à camada mais íntima, intemporal, à essência deste livro e, atrevo-me a dizê-lo, ao coração da escritora. As reflexões condensadas em breves excertos constituem uma visão inspirada e profunda sobre a vida e a morte, a imortalidade e a existência de Deus. Não há como o negar: são simples apontamentos, mas com uma lucidez e uma força que obrigam o leitor a recolocar-se perante a vida, a sua própria vida. Sem receios, deixemo-nos contaminar por esta “febre”. É benigna e trata-se com a leitura, o melhor de todos os antídotos.