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quarta-feira, 15 de abril de 2020

LIVRO: "O Poço e a Estrada"



LIVRO: “O Poço e a Estrada – Biografia de Agustina Bessa-Luís”, 
de Isabel Rio Novo 
Edição | Rui Couceiro 
Ed. Contraponto Editores, Fevereiro de 2019 


Não deixarei muitos rastos pessoais... Apenas e sobretudo a grande coerência de uma vida romanesca, repleta de situações insólitas, onde coexiste a grande inocente e a grande sedutora que de facto sou...”

Promover ou reforçar a descoberta, a compreensão e o amor pela figura de Agustina Bessa-Luís e pela sua obra, tal é o grande mérito de “O Poço e a Estrada”. Biografia não autorizada com assinatura de Isabel Rio Novo, nela se desvenda, de forma apaixonada, o mundo daquela a quem António José Saraiva se referiu como “a grande revelação, o segundo milagre do século XX português”, logo após Fernando Pessoa. Com humildade e elegância, a autora mostra-se exímia em contornar os escolhos que se levantaram à feitura deste livro e, tal como Agustina, vai descobrindo nas páginas extraordinárias escritas por outros, “um milagre, uma criação do mundo”. A elas junta as suas próprias páginas, nas quais se destacam os testemunhos daqueles que conviveram com Agustina, as visitas aos lugares da escritora e a leitura cuidada da sua vasta obra publicada. Este “artesanato impossível da biografia verdadeira”, encara-o Isabel Rio Novo como o seu grande desígnio e o seu grande desafio. O resultado está à vista e não poderia ser mais intenso e estimulante. 

Uma das facetas mais sedutoras de “O Poço e a Estrada” advém da forma como a autora constrói a narrativa, combinando de forma notável a natureza verídica do relato com a liberdade criativa da ficção. Num misto de zelo e paixão que encanta e comove, Isabel Rio Novo recolhe os “rastos pessoais” possíveis daquela que a si própria se designou como “uma espécie de Dostoievsky” e, abraçando o desígnio de “chamar Agustina”, faz incidir sobre eles as suas qualidades de romancista, oferecendo ao leitor um relato vívido de Agustina, onde o divertido e o sério se elevam como marcas distintivas de uma vida que, em si mesma, encerra “um feixe de contradições”. 

Sabendo reconhecer que “a possibilidade duma realidade é infinita”, a autora quis ver Agustina como uma personagem, como ela pediu que a vissem. Através da pesquisa do coração humano, como ela aconselhou. É assim que Agustina se passeia pelas páginas deste livro, desde o seu nascimento em Vila Meã, no seio de uma família burguesa tradicional ligada à terra, até aos derradeiros dias, tomada pela doença, na Rua do Gólgota, nessa “casa de paredes cor-de-rosa, ocultada por um portão verde, que se abria sobre um jardim belíssimo, com uma vista deslumbrante sobre a barra do Douro e, na outra margem, os barcos atracados ao largo da Afurada.” Pelo meio ficam passagens tão ricas, tão cheias de sons e de cores, como a deliciosa descrição da Póvoa de Varzim nos anos 1930, o tremendo duelo sob a forma de opúsculos com o crítico literário Jaime Brasil, a premiação e a publicação de “A Sibila”, a sólida amizade com Maria Helena Vieira da Silva, a tumultuosa experiência da coisa pública, as antipatias e ódios de estimação que concitou no meio literário ou a profícua colaboração com o cineasta Manoel de Oliveira. 

“Quem esperar encontrar na biografia de um génio a explicação da sua genialidade perde o seu tempo.” Isto sabe Isabel Rio Novo, tal como sabe, melhor que ninguém, que “a vida de Agustina não cabe nos limites cronológicos do seu nascimento e da sua morte”, devendo ser indagada “no futuro da sua obra”. Daí debruçar-se, de forma emotiva, sobre “a relação de Agustina com os seus fantasmas, pessoas da sua família e outros seres da sua convivência, com quem foi travando um diálogo, em quem se inspirou para compor um universo ficcional.” Com enorme sensibilidade, os livros de Agustina sucedem-se e as respectivas personagens vão-se cruzando com as figuras que compuseram o universo da escritora, biógrafa e biografada em comunhão perfeita nesse ofício de misturar e confundir o real e o aparente. Pode o resultado final ser tudo menos linear? Pode. Mas que interessa isso. “Até quando não me interpretam, compreendem-me. Até quando não aderem, aprovam-me”, disse Agustina. 

Agustina pode provocar sentimentos de temor, de controvérsia, de distância também, porque não é à toa que a sua figura pertence à nossa galeria de mitos nacionais e não é evidente chegar-se perto dos mitos sem correr o risco de lhes descobrir a medida da realidade. Isabel Rio Novo mostrou a sua ousadia ao aceitar correr esse risco. Se lhe disser que, graças a “O Poço e a Estrada”, a minha descoberta de Agustina e a compreensão pela sua pessoa são agora maiores, que o amor à sua obra se tornou mais forte ainda, estarei apenas a cumprir um dever de gratidão pela forma admirável como soube pegar na vida de uma das mais geniais e complexas personalidades da literatura em língua portuguesa e engrandecê-la, devolvendo-a sob a forma deste livro. Ela própria biógrafa, Agustina Bessa-Luís ter-se-á furtado a escrever uma autêntica autobiografia. Em contrapartida, afirmou que a melhor biografia seria aquela que fosse feita pelo próprio. Quero crer que a sua opinião não seria a mesma caso tivesse podido ler “O Poço e a Estrada”.

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