de Patrícia Portela
Ed. Editorial Caminho, Maio de 2017
“Mantém uns óculos escuros sempre à mão. O regresso à realidade é sempre um choque demasiado iluminado e nem sempre mais construtivo, ainda que se diga por aí, e de forma leviana, que de toda a desgraça se pode tirar uma qualquer lição.”
Em termos pessoais, diria que o nome de Patrícia Portela remete por inteiro para o Teatro. É na qualidade de encenadora, dramaturga, cenógrafa ou actriz (ou tudo isso ao mesmo tempo), que a conheço e me habituei a vê-la. A verdade é que, havendo uma Patrícia Portela em todos esses papéis, há sobretudo uma Patrícia Portela escritora, como ela própria reconhece em entrevista ao Jornal de Letras, datada de 2017, e que pode ser vista AQUI. Foi isso que percebi ao ler “dias úteis”, um livro onde nos damos conta de uma escrita singular, versátil e tremendamente imaginativa, à medida que adentramos o multifacetado universo desta autora. Através das suas palavras, descobrimos o afã criador nesse ponto indefinido onde Literatura e Teatro se parecem misturar e confundir, e que nos parece lembrar que a vida é o mais precário dos palcos.
Quem o sopesa no início e olha para ele agora que a leitura chega ao fim, sabe bem o quão enganador um livro pode ser. Com pouco mais de cem páginas, “dias úteis” é gigante naquilo que tem para nos oferecer. As leituras possíveis são tantas e tão distintas que se torna impossível classificá-lo. É um livro exigente, denso e complexo, que pede tempo e reclama investimento. Sucedendo-se numa lógica que parece estar ali para se contrariar a si própria, as palavras são objectos que se colhem em sobressalto, se avaliam na sua intimidade, se analisam dos mais variados ângulos antes de, com todo o cuidado, serem devolvidas ao livro. Entre a tentativa e o erro, ditos e subentendidos, palavras soltas ou escritas pela metade, o leitor vai rodando nas mãos as peças deste imenso puzzle até descobrir o sítio certo onde as encaixar. É um jogo de paciência, cuja imagem final deixará perceber a presença de um ínfimo elemento à deriva no caos que tomou conta da humanidade e no qual cada leitor tenderá a reconhecer-se.
Antes de segunda-feira, o primeiro dia útil da semana, já Patrícia Portela nos abriu as portas da quadra de jogo, apresentou as equipas e veio dizer que a regra é não haver regra. Somos peões num tabuleiro do qual não podemos fugir. A cada um o seu momento. Todos acabarão por ser chamados a dar prova do seu valor e da sua verdade. Nesse imponderável que é estar vivo, serão muitos os que perceberão que é naquilo que os separa dos outros que se encontram os melhores trunfos. Outros, por seu lado, jogarão o jogo sem sequer se darem conta. Os dias suceder-se-ão e mostrarão que “levar uma vida habitual de segunda a sexta feira” é o máximo a que cada um poderá aspirar. O resto é o que já sabemos: Desmembramo-nos aos poucos, como se fossemos feitos de papel. Trocamos todas as coisas por qualquer coisa, até darmos por nós a plantar urânio numa praia. Buscar respostas claras para o complexo princípio do Universo é inútil, tão inútil como fazer planos de férias. “Somos todos zombies, nem carne, nem peixe, nem vivos, nem mortos, e não há plano de contingência para tamanha catástrofe natural.” A semana chega ao fim. O epitáfio de domingo para o dia seguinte é um espaço em branco.
Sem comentários:
Enviar um comentário