LIVRO: “A Febre das Almas
Sensíveis”,
de Isabel Rio Novo
Edição | Maria do Rosário
Pedreira
Ed. Publicações Dom Quixote,
Fevereiro de 2018
Quando o propósito é reflectir
sobre aquilo que nos legam certos livros, virada que foi a
derradeira página, casos há em que importa alguma cautela, não vá
a emoção, qual febre, toldar-nos o entendimento. “A Febre das
Almas Sensíveis” é um desses livros. Pelo muito que diz e pela
forma como o faz. Poderia ser lido de um fôlego, mas naquilo que,
de mansinho, vai pondo a nu, no que convoca de dor e coragem, de
sofrimento e resignação, de vida e morte, há matéria demasiado
substantiva para se dar o leitor a pressas. Numa escrita límpida,
pessoas, lugares e coisas são-nos apresentadas com tal dose de exactidão e elegância, que é de coração apertado que vemos
colarem-se-nos à pele, página após página, aqueles quadros,
unindo-nos agora pelas mesmas causas, animando-nos nas mesmas
(pequenas) vitórias, provando-nos impotentes face à mesma miséria,
separando-nos dos outros e de nós próprios nas mesmas tragédias.
É curioso perceber como o livro se relaciona com a imagem de capa, “Separação”, pintura de
Edvard Munch, um homem que acreditava que as sombras eram a fonte da
sua arte. É com linhas suaves, detalhadas, impressivas, mas com uma
paleta reduzida aos tons mais sombrios, que Isabel Rio Novo “pinta”
este seu livro. Uma pintura feita de camadas e que resulta num quadro tão belo quanto amargo; sobretudo quando vemos que é da
tuberculose em Portugal na primeira metade do século passado que nos
fala o livro, sendo a “febre das almas sensíveis” apenas um
eufemismo para designar esse flagelo que matava 20.000 pessoas a cada
ano. E que não se resumia a atingir apenas as “almas sensíveis”, os poetas, antes “era a doença das multidões operárias das cidades,
trabalhando mais do que o permitido por lei, amontoadas em mansardas
sem esgotos, exaustas e mal alimentadas. (…) Era a doença das
sociedades miseráveis. E Portugal era uma sociedade miserável”,
conforme pode ler-se a páginas tantas.
Mas voltemos às pinturas, às
camadas, às analogias. A mais superficial é precisamente a
tuberculose e a forma como marca, de forma brutal, uma família entre
tantas outras. Há depois uma segunda camada, justificada por um
tempo outro, o tempo presente, onde a figura duma jovem investigadora
se mostra determinante para conhecermos, ainda que ao de leve,
algumas dessas “almas sensíveis” a que o título alude: Cesário
Verde, António Coelho Lousada, Soares de Passos, Júlio Dinis,
António Castro Alves, António Nobre, Casimiro de Abreu ou Sebastião
da Gama. Mas é precisamente através da jovem investigadora e da
transcrição dum manuscrito descoberto no que resta dum sanatório, “Considerações sobre a morte,
alinhavadas por R.N.” (de “Reis Novo” / “Rio Novo”) que
acedemos à camada mais íntima, intemporal, à essência deste livro
e, atrevo-me a dizê-lo, ao coração da escritora. As reflexões
condensadas em breves excertos constituem uma visão inspirada e
profunda sobre a vida e a morte, a imortalidade e a existência de
Deus. Não há como o negar: são simples apontamentos, mas com uma
lucidez e uma força que obrigam o leitor a recolocar-se perante a
vida, a sua própria vida. Sem receios, deixemo-nos contaminar por esta “febre”. É benigna e trata-se com a leitura, o melhor de todos os antídotos.
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