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quarta-feira, 28 de março de 2018

LIVRO: "A Febre das Almas Sensíveis"



LIVRO: “A Febre das Almas Sensíveis”,
de Isabel Rio Novo
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Publicações Dom Quixote, Fevereiro de 2018


Quando o propósito é reflectir sobre aquilo que nos legam certos livros, virada que foi a derradeira página, casos há em que importa alguma cautela, não vá a emoção, qual febre, toldar-nos o entendimento. “A Febre das Almas Sensíveis” é um desses livros. Pelo muito que diz e pela forma como o faz. Poderia ser lido de um fôlego, mas naquilo que, de mansinho, vai pondo a nu, no que convoca de dor e coragem, de sofrimento e resignação, de vida e morte, há matéria demasiado substantiva para se dar o leitor a pressas. Numa escrita límpida, pessoas, lugares e coisas são-nos apresentadas com tal dose de exactidão e elegância, que é de coração apertado que vemos colarem-se-nos à pele, página após página, aqueles quadros, unindo-nos agora pelas mesmas causas, animando-nos nas mesmas (pequenas) vitórias, provando-nos impotentes face à mesma miséria, separando-nos dos outros e de nós próprios nas mesmas tragédias.

É curioso perceber como o livro se relaciona com a imagem de capa, “Separação”, pintura de Edvard Munch, um homem que acreditava que as sombras eram a fonte da sua arte. É com linhas suaves, detalhadas, impressivas, mas com uma paleta reduzida aos tons mais sombrios, que Isabel Rio Novo “pinta” este seu livro. Uma pintura feita de camadas e que resulta num quadro tão belo quanto amargo; sobretudo quando vemos que é da tuberculose em Portugal na primeira metade do século passado que nos fala o livro, sendo a “febre das almas sensíveis” apenas um eufemismo para designar esse flagelo que matava 20.000 pessoas a cada ano. E que não se resumia a atingir apenas as “almas sensíveis”, os poetas, antes “era a doença das multidões operárias das cidades, trabalhando mais do que o permitido por lei, amontoadas em mansardas sem esgotos, exaustas e mal alimentadas. (…) Era a doença das sociedades miseráveis. E Portugal era uma sociedade miserável”, conforme pode ler-se a páginas tantas.

Mas voltemos às pinturas, às camadas, às analogias. A mais superficial é precisamente a tuberculose e a forma como marca, de forma brutal, uma família entre tantas outras. Há depois uma segunda camada, justificada por um tempo outro, o tempo presente, onde a figura duma jovem investigadora se mostra determinante para conhecermos, ainda que ao de leve, algumas dessas “almas sensíveis” a que o título alude: Cesário Verde, António Coelho Lousada, Soares de Passos, Júlio Dinis, António Castro Alves, António Nobre, Casimiro de Abreu ou Sebastião da Gama. Mas é precisamente através da jovem investigadora e da transcrição dum manuscrito descoberto no que resta dum sanatório, “Considerações sobre a morte, alinhavadas por R.N.” (de “Reis Novo” / “Rio Novo”) que acedemos à camada mais íntima, intemporal, à essência deste livro e, atrevo-me a dizê-lo, ao coração da escritora. As reflexões condensadas em breves excertos constituem uma visão inspirada e profunda sobre a vida e a morte, a imortalidade e a existência de Deus. Não há como o negar: são simples apontamentos, mas com uma lucidez e uma força que obrigam o leitor a recolocar-se perante a vida, a sua própria vida. Sem receios, deixemo-nos contaminar por esta “febre”. É benigna e trata-se com a leitura, o melhor de todos os antídotos.

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