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sábado, 30 de maio de 2020

LIVRO: "Rua de Paris em Dia de Chuva"



LIVRO: “Rua de Paris em Dia de Chuva”, 
de Isabel Rio Novo 
Edição | Maria do Rosário Pedreira 
Ed. Publicações Dom Quixote, Março de 2020


“Como bons burgueses, incorporaram-se na pequena multidão de cavalheiros de chapéu alto e sobrecasaca escura e senhoras de chapéus emplumados que cruzavam as galerias. No ar, respirava-se o aroma cálido dos perfumes das mulheres, misturado com o cheiro dos vernizes recentes aplicados nos soalhos. Enquanto Charlotte e Aline mergulhavam as mãos nos cortes de seda e aceitavam experimentar os vidrinhos de perfumes que as empregadas, bonitas e sorridentes nas suas fardas impecáveis, lhes aproximavam do rosto, Auguste discorria sobre os vários motivos que naquele cenário se ofereciam a um pintor: a profusão de objetos, o luxo das roupas, a excitação dos clientes, até aquela empregada ruivita, ali no balcão, parecendo imensamente triste e desamparada por detrás do sorriso e do uniforme.”

Na sua página do facebook, Isabel Rio Novo recordava-nos, há uns dias atrás, o filme “Midnight in Paris”, de Woody Allen. Neste, Gil (Owen Wilson), um bem sucedido escritor de Hollywood, sempre que passeia pela capital francesa à meia noite, é transportado para a Paris de 1920 onde convive com escritores, pintores e outros artistas. “Nada como ter bebido uns copos na véspera com Picasso e Modigliani para se saber exatamente as circunstâncias em que nasceu um quadro”, refere a autora de forma bem humorada, para de seguida nos deixar com a seguinte interrogação: “Terá isto alguma a coisa a ver com o romance que escrevi?”. Lendo “Rua de Paris em Dia de Chuva”, sabemos que é a si própria que a autora dirige a pergunta, da mesma forma que o faz, directa ou indirectamente, ao longo deste seu romance. Um romance com um forte cunho autobiográfico, ao mesmo tempo exercício de escrita e veículo de reflexão sobre o acto da criação artística e, de um modo mais vasto, sobre a vida, no que ela tem de misterioso e belo, mas também de irónico e efémero.

Recuperando o tom do anterior “O Poço e a Estrada” – visão intensa, densa e sensível sobre a vida e a obra de Agustina Bessa-Luís –, “Rua de Paris em Dia de Chuva” oferece-nos um olhar profundamente humano e sensível de Gustave Caillebotte, mecenas dos impressionistas e artista-pintor, nascido em Paris em 1848 e que viria a falecer em Petit Gennevilliers, aos 45 anos, vítima de acidente vascular cerebral. Saltitando entre a Paris oitocentista e o Porto dos dias de hoje, Isabel Rio Novo faz dos pontos de contacto entre a vida do pintor e a sua própria vida o leitmotiv deste seu livro. Para tal, introduz na acção, a par de Caillebotte, duas outras figuras que mais não são do que dois traços vincados do seu próprio “eu”, enquanto mulher e escritora, ser duplicado, razão e coração em permanente diálogo, os caminhos da criação trilhados ao sabor dos caprichos.

Neste olhar sobre o pintor, descobrimos, ainda, o enorme trabalho de pesquisa que se esconde por detrás do livro. A escrita cuidada de Isabel Rio Novo transporta o leitor para os espaços da acção, onde, com enorme realismo, se desvendam as pulsões e matizes da vida e obra de Gustave Caillebotte e se apresentam, com enlevo, os quadros um a um. Convidado a atentar nas cambiantes delicadas, nas perspectivas arrojadas e nos mais ínfimos detalhes, o leitor tenderá a sentir-se levado numa visita guiada, aqui residindo, quiçá, a maior fraqueza do livro. Mas Isabel Rio Novo aceitou correr esse risco. Só assim poderia incitar-nos a raspar ao de leve, com a unha, a superfície de cada tela, pondo a nu as muitas histórias que se escondem sob o dúbio manto das aparências. Só assim a poderíamos descobrir entre a multidão ao longo das ruas de Paris, assistindo a uma regata no porto de Argenteuil ou observando o pintor no meio das dálias no jardim de Petit Gennevilliers. E, reparando com atenção, ao lado de Isabel Rio Novo, estaremos nós, também.

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