O FESTA – Sons da Lusofonia regressou a Ovar para a sua décima edição. Ponto de encontro de toda a comunidade, ao longo de dois emotivos e intensos dias o Parque Urbano da cidade transformou-se num espaço de celebração da diversidade, inclusão e participação activa, através de um conjunto de actividades voltadas para os mais variados públicos. Ponto alto da FESTA, os concertos viram-se repartidos por três palcos, reunindo artistas brasileiros, cabo-verdianos, moçambicanos e portugueses, para dez momentos musicais que trouxeram consigo uma promessa de comunhão em torno da boa música. Novidade nesta edição do FESTA foi o “Lugar das Infâncias”, uma aldeia para brincar e descobrir um mundo plural e tolerante, onde os mais novos e suas famílias se sentiram convidados a explorar a diversidade cultural através de histórias, brincadeiras, gestos, sons e silêncios. O jornalista Rui Miguel Abreu repetiu a presença no FESTA, moderando um vasto conjunto de conversas que se abriram em criação, memória, liberdade e futuro, num “Dar à Língua” que aproximou artistas e público. E foi justamente por aqui que o FESTA teve o seu início, com os Cara de Espelho a fazerem a antevisão do primeiro de dois concertos previstos para a noite do primeiro dia e com a apresentação do Livro “Festa - Sons da Lusofonia: Da Revolução ao Ritmo - 50 anos do 25 de Abril em Sons Lusófonos”, um trabalho que reúne todos aqueles que passaram pelas conversas em 2024, edição muito especial a assinalar o cinquentenário do dia inicial inteiro e limpo.
Depois de um dia cinzento e chuvisquento, o Sol disse “olá” à tarde de sexta feira e foram muitos aqueles que responderam à chamada para o concerto de abertura do FESTA. No fantástico anfiteatro natural em frente ao Palco Verde, uma numerosa assistência dispôs-se a ouvir A garota não, a sua música, as palavras sempre incisivas e mordazes apontadas a uma classe dirigente que aposta na negação dos valores da liberdade, igualdade, justiça e democracia, afirmando o seu poder através da opressão e exploração dos mais fracos e vulneráveis. Com Sérgio Miendes e João Mota nas guitarras e Diogo Sousa na bateria, A garota não fez questão de mostrar que “não é não”, na denúncia de “um país que não é para mães”, onde “toda a gente aceita o saque” e “há bestas no lugar de deputados”. Do novíssimo “Ferry Gold”, os temas são “disparados” com força e raiva, penetrando as consciências do público e arrancando-lhe aplausos vigorosos. Seguiu-se um “medley” com cinco temas do segundo álbum de estúdio da artista, “2 de Abril”, e de novo o retomar de “Ferry Gold”, no “train a curtir Coltrane” para se concluir que “a vida é uma roleta com cinco balas no tambor”. A terminar, pois que se privatize o mar e o céu, a justiça e a lei, a nuvem que passa, o sonho (sobretudo se for diurno e de olhos abertos). “E, já agora, privatize-se também a puta que os pariu a todos”. A mim parece-me bem!
Os Cara de Espelho abriram as hostilidades do segundo momento deste dia inaugural, alinhando pelo diapasão da música de denúncia e protesto, tão necessária nos dias que correm. Banda revelação no ano passado com o lançamento do álbum homónimo, os Cara de Espelho começaram por assumir a sua condição, sendo o reflexo do numeroso público que fez questão de os aplaudir. Reflexo, afinal, de quem olha para si e não gosta do que vê, e que tem na banda uma voz que é uma via aberta à reivindicação e ao murro na mesa. Na voz de Maria Antónia Mendes, “Mitó para os amigos”, “Tratado de Paz” foi o primeiro tema da noite, ao qual se seguiram “Cara Que é Tua” e um poderoso “Corridinho Português”, “a juntar a malta numa boa”, porque “triste é quem fica a ver dançar”. Animado, o concerto prosseguiu quase em forma de comício. Na plateia, “livres criaturas” gritavam “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais”, enquanto no palco se louvavam as benesses dos paraísos fiscais e se rogava a S. Pedro que “[nos] receba no seu Portal das Finanças”. Com as letras e músicas de Pedro da Silva Martins e a magia dos instrumentos de Carlos Guerreiro, Nuno Prata e Sérgio Nascimento, entre outros, o concerto levou-nos do “Fadistão” ao “Ministério do Anonimato”, até parar no “Dr. Coisinho” e na sua “coisificação do dedo”, a plateia com os dedos médios de ambas as mãos espetados no ar, numa coreografia impressiva que as luzes amplificavam. Na despedida, um alerta para as varejeiras - [que] “anseiam pobreza, fomentam o asco, a náusea e o nojo” - e uma pergunta: “Em qual de vós é que ela vai poisar?”
A fechar a noite, os Cacique 97, banda pioneira do Afrobeat, ofereceram um magnífico momento, feito de ritmo, história e força coletiva. Espécie de “Best of” dos seus dois álbuns de estúdio - “Cacique 97” (2009) e “We Used to be Africans” (2016) -, o concerto mostrou uns “caciques” em grande forma, pondo em palco um género popularizado em África na década de 1970 e que se espalhou ao mundo. Fiel ao conceito musical do género e ao seu cunho político de denúncia e protesto, esta big band não esqueceu o papel criador do multi-instrumentista e nigeriano Fela Kuti, num impactante e revelador “Come from Nigeria”. Liderada pelo guitarrista e vocalista Milton Gulli, a banda manteve em diálogo constante, livre e rico, uma poderosa secção rítmica, onde pontifica Marisa Gulli (que dá também apoio nas vozes), com um naipe de metais firme e assertivo, cruzando o groove africano com a alma lusófona, num som de combate e celebração. Ritmos quentes, letras de intervenção e uma energia contagiante era tudo o que o público esperava, reagindo com o embalar dos corpos e algumas coreografias improvisadas sobre o anfiteatro verde de um Parque Urbano em ebulição. “American Cop”, “Jorge de Capadocia”, “Get no Stronger”, “13”, “Dragão” ou “Letter to the Martyrs”, novíssimo single da banda e que denuncia a ocupação, a colonização e o genocídio do povo da Palestina, foram temas trazidos a palco com enorme força, numa despedida em grande do FESTA, ao final do primeiro dia.
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