Sediada desde 2014 no Centro de Arte Oliva, a Colecção Treger Saint Silvestre – uma das mais importantes colecções de Arte Bruta e Arte Singular do mundo – continua a ser fonte inesgotável de abordagens nos mais variados contextos: Artísticos, conceptuais, filosóficos e outros. “Espírito Singular”, com curadoria de Martine Lusardy, é disto um sólido exemplo, ao reunir um vasto conjunto de obras que se destacam por desafiar as convenções, escapar aos códigos estabelecidos e oferecer leituras inovadoras e modos alternativos de nomear a realidade. Para além dos autores tradicionalmente associados aos momentos fundadores da Arte Bruta, a exposição integra também artistas e práticas provenientes de contextos mais recentes e variados, ampliando o entendimento deste universo artístico. Uma parte significativa da exposição, apresentada num espaço dedicado, reúne obras fotográficas, fotomontagens e colagens criadas por indivíduos que trabalham fora dos circuitos artísticos convencionais, muitas vezes em contextos de confinamento ou isolamento social.
A exposição “Espírito Singular” é representativa da paixão que Richard Treger e António Saint Silvestre nutrem pela Arte Bruta. É inegável que a ligação pessoal dos fundadores à criação artística e às suas raízes africanas — o Zimbabué, no caso de Richard, pianista, e Moçambique, no de António, escultor — influenciou a sua abordagem a este território artístico e moldou a sua perspectiva sobre estas produções, nascidas da alteridade social ou mental. Se existe uma ligação entre elas, não é a de um estilo escolar ou de um movimento específico da arte cultural, mas antes a de uma família original: o instinto criador. Estes artistas desenham, pintam, esculpem, acumulam objectos rejeitados ou recolhem da natureza traços e impressões, que depois recompõem, colam e fotografam. São exploradores de linguagens arcaicas ou ilusionistas que transformam matéria bruta, experimentadores primitivos ou mestres da “grande arte”, e até artistas profissionais libertários que se dedicam a reparar o mundo ou a torná-lo mais habitável.
Mais do que integrar-se nas normas estéticas e sociais, estes criadores escolhem a liberdade dos caminhos inusitados. Através das suas obras, dão voz à humanidade com as suas paixões, angústias, certezas, loucuras, sonhos e revoltas. Longe de repetir o que já foi feito, as suas criações, repletas de excessos mas também de poesia, são espaços de teatro íntimo, transmissores de mitologias individuais onde a angústia da morte não exclui a alegria de viver, especialmente quando o que está em jogo é reagir à condição humana inaceitável. A colecção convida-nos a mergulhar na magia de um outro mundo — ao mesmo tempo familiar e desconhecido — onde se celebram as núpcias entre arte e loucura, vida e morte, onde se entrelaçam a passagem da origem à cultura, do íntimo ao universal. Um mundo sem o qual o poder do imaginário e do simbolismo se perderia para sempre, e a descoberta de novos horizontes se tornaria impossível.
[Baseado no texto de Martine Lusardy, inscrito na Folha de Sala da exposição, em https://centrodearteoliva.pt/wp-content/uploads/2025/05/2024-CAO-7-Exp-Espirito-Singular-Folha-de-Sala-04-AF.pdf]
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