CONCERTO: “Iste Confessor Domini – Música franco-flamenga e portuguesa do séc. XVI”
Musurgia Ensemble
Direcção musical | João Francisco Távora
Com | António Godinho (flauta de bisel), Emma Reynaud (flauta de bisel), João Francisco Távora (flauta de bisel), Robert Ehrlich (flauta de bisel), Sofia Pedro (soprano), Luís Toscano (tenor)
Apresentação | Ana Isabel Nistal Freijo
Maio do Azulejo 2025
Igreja Matriz de Válega
17 Mai 2025 | sab | 18h00
“Unha lingua é máis ca unha obra de arte; é matriz inesgotábel de obras de arte”.
Castelao
Antes de falar do extraordinário momento que foi “Iste Confessor Domini” e do olhar que o Musurgia Ensemble abriu sobre a música franco-flamenga e portuguesa do século XVI, falarei de um projecto que merece a minha admiração e ao qual este concerto, ainda que programado no âmbito do Maio do Azulejo, se encontra intimamente ligado. Falo de “Inovar as Letras”, residência artística de Ana Isabel Nistal Freijo que tem como sede e laboratório de criação o Museu Júlio Dinis – Uma Casa Ovarense. É a partir do mais representativo símbolo literário da cidade que a investigadora, natural da Galiza e a residir entre nós, se propõe abordar, de forma inovadora, o sonoro e o musical na literatura portuguesa, ao mesmo tempo contribuindo para a promoção da imagem de Ovar como cidade criativa. O amor às letras e à língua portuguesa e a sua experiência pedagógica nos campos da estética e da hermenêutica, fazem de Ana Freijo a pessoa certa no lugar certo, para júbilo maior daqueles que se mostram dispostos a abraçar uma agenda rica de propostas e conteúdos e que se prolongará no tempo até finais de Março do próximo ano.
O projecto “Inovar as Letras” foi apresentado na tarde de domingo na acolhedora sala do Museu Júlio Dinis, o mesmo lugar que nos dias anteriores recebera os músicos numa residência artística desenvolvida pelo Musurgia Ensemble, sob a orientação de João Francisco Távora. Este facto deixa clara a ligação entre dois momentos de enorme significado e alcance, com cinco dos sete elementos envolvidos no concerto a marcarem presença no dia seguinte e a oferecerem, no decurso da apresentação do projecto, um momento musical que a todos encantou. Olhemos, enfim, para o concerto de sábado, não sem antes admirarmos a beleza do interior da Igreja Matriz de Válega e a riqueza azulejar que encerra, propiciadores das condições ideais para a fruição de uma música de cariz litúrgico. Este concerto foi o culminar do trabalho de investigação do manuscrito P-Cug MM 2, do século XVI, repositório de onze Missas dos mais prestigiados compositores franco-flamengos da época e de um Credo - na verdade incompleto e de autor desconhecido - que podemos encontrar na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra.
Parte integrante do manuscrito referido, a Missa “Iste Confessor Domini” presidiu ao programa do concerto, o qual incluiu também um conjunto de três peças instrumentais de compositores portugueses e franco-flamengos do mesmo período: “Verso do 4.º Tom”, de Heliodoro de Paiva, “Ricercar 6”, de Jacques Buus, e “Tento do 2.º Tom”, de António Carreira. Dividido em duas partes, o concerto foi apresentado por Ana Freijo, com o intuito de contextualizar o trabalho artístico e laboratorial em causa. A investigadora começou por destacar um repertório representativo do que de melhor se pode achar no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, mas também o facto de estarmos perante um consorte de flautas, todas elas réplicas de instrumentos do século XVI, período a que se reportam as composições seleccionadas. A escuta dos diferentes tons de cada uma das flautas e uma leitura do conteúdo da Missa por Sofia Pedro predispuseram o público para os dois momentos - o “Kyrie” e o “Gloria” - que abriram o concerto e se revelaram preciosos, tanto pela limpidez de vozes dos solistas quanto pela graça e requinte do consorte de flautas. Intrometendo-se entre dois instrumentais, o Credo foi um momento sublime, a harmonia das vozes e das flautas a elevarem o concerto a um patamar de qualidade ímpar.
A dar início à segunda metade do concerto, Ana Freijo falou das peças instrumentais e de que forma as podemos encontrar nos respectivos manuscritos, por vezes reescritas, ainda que com algumas discrepâncias. São vários os ensinamentos que se podem retirar destes factos, desde logo a função didáctica dos manuscritos, um conjunto de peças não sujeitas a uma interpretação rígida, tal como os instrumentos utilizados que poderiam ser outros. Estamos, pois, perante um repertório aberto em todos os sentidos, ao contrário da ideia comum de que uma peça só tem uma forma de ser interpretada. Daí que o programa seja uma proposta de interpretação e não uma recriação exacta de como seria esta música tocada no Mosteiro de Santa Cruz em pleno século XVI. “É sempre bom termos consciência que os próprios músicos do século XVI tinham esta flexibilidade perante o repertório”, concluiu Ana Freijo. Passando à música, a segunda parte teve no Sanctus, da Missa “Iste Confessor Domini” novo momento alto, com Sofia Pedro a impressionar pela beleza de timbre e afinação irrepreensível, enquanto Luís Toscano evidenciava uma superior dinâmica de interpretação. A terminar, o “Agnus Dei” foi a coroa de glória de um concerto marcado pela profunda entrega interpretativa de todos os elementos sem excepção e de um som limpo, harmonioso e muito belo.
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