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quarta-feira, 30 de abril de 2025

EXPOSIÇÃO: “A Life in a Few Lines” | Huguette Caland



EXPOSIÇÃO: “A Life in a Few Lines”,
de Huguette Caland
Curadoria | Hannah Feldman
Centro de Arte Reina Sofia, Madrid
19 Fev > 25 Ago 2025


“The media I used for art is mostly my own life.”
Huguette Caland

“A Life in a Few Lines”, é a primeira grande retrospectiva na Europa dedicada a Huguette Caland (Beirute, 1931-2019), uma artista cuja vida e obra atravessaram décadas e continentes, desafiando as convenções estéticas e sociais do seu tempo. Através de quase trezentas obras, incluindo desenhos, pinturas, esculturas, colagens e criações multimédia, esta exposição oferece uma narrativa completa e exaustiva baseada na linguagem artística e na história de vida de Caland, ambas intimamente ligadas através da preocupação que está no centro da sua obra: a experiência do eu no encontro com os outros e com os lugares que conheceu. As suas obras dão testemunho de um trajecto que a levou do seu Líbano natal à utopia de Paris e, mais tarde, à cena artística de Venice, Califórnia, antes do definitivo regresso a Beirute. Ao mergulhar nestes diferentes ambientes, Caland criou o seu próprio vocabulário de configurações e formas pictográficas, desafiando tanto a estabilidade do signo linguístico e as oposições binárias fundamentais da arte e do pensamento ocidentais, como a abstração e a figuração, o masculino e o feminino, a imagem e o contexto, o singular e o coletivo.

Filha de Bechara El Khoury, primeiro presidente do Líbano após a independência do país em 1943, Caland iniciou a sua carreira artística aos 33 anos com a tela monocromática “Soleil rouge / Cancer”, cujo título reflecte a representação simultânea de um novo e excitante começo mas também o cancro devastador que acabara de devorar o seu pai. As obras que criou durante esta primeira fase mostram já alguns dos motivos que apareceriam na sua pintura ao longo das décadas, das referências autobiográficas às formas que lembram letras árabes, dos fortes eixos verticais e horizontais aos pontos e linhas. Um exemplo notável é “Exit”, em que uma multidão heterogénea de rostos mais ou menos reconhecíveis do círculo da artista coexistem num mesmo espaço sem margem para respirar. Em 1970, Caland instala-se em Paris em busca de novos estímulos e de maior liberdade criativa. Aí desenvolveu aquela que é provavelmente a sua série mais célebre, “Bribes de corps”, onde erotiza fragmentos do corpo humano que compõem uma paisagem erótica de cores vibrantes e linhas delicadas. Na forma como se expandem, transbordam, retraem, mudam e contorcem, parecem reflectir sobre o género binário e as suas lógicas, mas que podem também ser entendidas como uma exploração de sistemas alternativos de identificação e referencialidade.

No final dessa década, a exuberância das obras anteriores é substituída por figuras mais sedutoras. Em “Madame e Monsieur” (1980), as ambivalências sexuais das séries anteriores cristalizam-se em formas faciais que se dirigem ao interior do corpo, por oposição às que se manifestam à superfície. Esta deriva para criações mais sombrias está relacionada com o agravamento da situação política no Líbano. Em “Guerre incivile” (1981), uma das poucas obras de Caland que faz referência explícita a factos históricos contemporâneos, vemos uma representação da Guerra Civil Libanesa onde as alusões ao corpo misturam o prazer e a sensualidade das obras anteriores com membros amputados e rostos agonizantes. Outro resultado notável da sua estadia em Paris foi a sua incursão no design de moda com a criação de “Nour” (“luz” em árabe), uma colecção para o atelier de Pierre Cardin que incluía vestuário de inspiração árabe, abayas e kaftans, bem como artigos domésticos inspirados na arte islâmica. Antes destas criações, já tinha desenhado os kaftans “Foule" (1974) e “Miroir” (1974), nos quais bordou bocas sensuais, seios provocantes e outras formas anatómicas dos seus quadros, ligando a sua vida - ela usava estes vestidos em público - à sua arte.

Ainda em Paris, Huguette Caland embarcou num projeto que se afastava das suas linguagens e preocupações habituais. A série “L’argent ne fait pas le bonheur, mais il y contribue largement” é composta por 366 pequenas telas quadradas pintadas entre 1994 e 1995. Nestas obras, Caland transforma a linearidade precisa dos seus desenhos eróticos e as superfícies polidas das suas pinturas sensuais em registos mais grosseiros, muitas vezes kitsch. Por detrás do humor, tanto da palavra escrita como da imagem, desvenda-se uma crítica política e económica ao papel desempenhado pela moeda no fracasso de tantas aspirações individuais e colectivas, bem como uma reflexão mais pessoal sobre a relação entre a prática artística e o dinheiro. Tendo-se estabelecido em Venice, Califórnia, no final da década de 1980, viu-se confrontada com a incompreensão e a indiferença de um meio artístico predominantemente masculino e a sua produção mudou de direção uma vez mais. Numa série de auto-retratos do início da década de 1990, dedicou-se à colagem para incorporar fragmentos de cartas dos seus arquivos, dando à linguagem escrita um lugar central e misturando de novo a esfera pessoal e a prática artística. A série “Silent Letters” pode ser lida como uma forma de a artista se reconciliar com uma cena artística que parecia ignorar os seus contributos e, num sentido mais geral, como uma forma de lidar com sistemas marcadamente patriarcais.

Caland foi prolífica até ao final da sua carreira: no início dos anos 2000, já com problemas de saúde, reflectiu sobre a velhice, identificando-se com Rocinante, o pobre cavalo de Dom Quixote, que retratou em telas cromaticamente explosivas. Nestas e noutras obras posteriores, as marcas da trama e as grelhas são utilizadas para dar aos fundos a aparência têxtil do tatreez, uma técnica de bordado palestiniano com o qual Caland contactou através da Inaash, ONG que ajudou a fundar em 1969, destinada a fornecer ajuda aos palestinianos, em particular às mulheres refugiadas no Líbano, oferecendo-lhes a possibilidade de um trabalho remunerado e, ao mesmo tempo, contribuindo para a preservação do seu património cultural. Antes de iniciar aquela que viria a ser a sua última viagem, de volta a Beirute, concebeu uma série de telas de grandes dimensões como que em resposta a uma premonição ou como a expressão de uma funda saudade. Aqui, as casas libanesas, com os seus inconfundíveis telhados vermelhos, tornam-se um motivo recorrente, habitando paisagens fantásticas que se situam a meio caminho entre a memória e a imaginação. Os barcos e o azul do mar também aparecem nas obras deste período final, como nas composições simples “One Boat and Two Boats” (2011) ou na tela de grandes dimensões “Le grand bleu” (2012), uma metáfora da morte entendida como simultaneamente uma viagem para fora e um regresso a casa.


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