TERTÚLIA LITERÁRIA: “Tomai lá do O’Neill!”
Com Aurora Gaia
Agrupamento de Escolas de Ovar Sul
Biblioteca Escolar Júlio Dinis
19 Dez 2024 | qui | 18:30
“Imaginar, primeiro, é ver.
Imaginar é conhecer, portanto agir.”
Alexandre O’Neill. Excerto de “Ao Rosto Vulgar dos Dias”, in “No Reino da Dinamarca
Escritor autodidacta, escultor de palavras, publicitário brilhante, Alexandre O’Neill foi um dos grandes vultos da literatura portuguesa do século XX. Com Mário Cesariny, António Pedro, Moniz Pereira e outros, fundou o Movimento Surrealista de Lisboa. Entre poesia e prosa, traduções e antologias, escreveu muito, apaixonou-se muito, amuou muito. “Moreno português, cabelo asa de corvo”, sustentou que a regra é não haver regra. Perfilou-se de medo, seguiu o cherne, povoou de gaivotas o céu de Lisboa, deu novos sonhos à vida e fez da morte um lugar-comum. Nunca deixou de lançar um olhar irónico sobre este jardim à beira mar plantado (o que lhe valeu ter sido preso pela PIDE por diversas vezes), vertido em palavras que deixam entender o quotidiano mesquinho de um “modo funcionário de viver”. Autor de “Uma Coisa em Forma de Assim”, “Feira Cabisbaixa” ou “Um Adeus Português” – no qual lavra o epitáfio “Aqui jaz Alexandre O'Neill/ Um homem que dormiu muito pouco/ Bem merecia isto” –, faria anteontem 100 anos, caso tivesse tido pachorra para tanto.
A assinalar a efeméride, o Agrupamento de Escolas de Ovar Sul teve a iniciativa de promover uma sessão evocativa aberta à comunidade escolar. No acolhedor espaço da Biblioteca da Escola Secundária Júlio Dinis, a sessão arrancou com a projeção de “E Se Um Dia a Liberdade…”, curta-metragem de animação coordenada por João Católico e que envolveu alunos e professores de cinco escolas dos concelhos de Espinho e Ovar. Momento inaugural inteiro e lindo, o filme fez-nos recuar a 25 de Abril de 1974, convidando a olhar o antes, o durante e o após a libertação da ditadura. A primeira parte mostra-se preciosa num grafismo delirante, no cruzamento original da poesia de O’Neill e de Natália Correia e nas muitas camadas que encerra, feitas de mensagens subliminares e “private jokes”. A segunda parte segue os passos de Celeste Caeiro, a mulher que ofereceu cravos aos soldados, fazendo com que as armas florissem no “dia em que imergimos da noite e do silêncio”. O “hoje” dá-nos uma visão orwelliana de um mundo cinzento, as pessoas fechadas sobre si mesmas, cada vez menos capazes de pensar pelas próprias cabeças, submissas a um “big brother” insaciável que quanto mais as conecta às redes sociais, mais as afasta da realidade.
“Há palavras que nos beijam / Como se tivessem boca. / Palavras de amor, de esperança, / De imenso amor, de esperança louca”. Entre uma belíssima caricatura, da autoria de Adélia Oliveira, e um conjunto de trabalhos espalhados pela sala, ilustrativos de uma forma diferente de ler Alexandre O’Neill, poesia e prosa preencheram o momento seguinte, nas vozes das Professoras Manuela Bastos e Ana Maria Ferreira e, também, do Gustavo e da Rita, do Vasco, das duas Leonores, da Joana, da Matilde, do André Maia. Convidada especial, a poetisa e actriz Aurora Gaia encerrou a sessão, trazendo um “inusitado alinhavado de memórias”, nele avultando a sua relação profissional com a cineasta Noémia Delgado, que foi casada com Alexandre O’Neill. Também aqui a poesia não podia faltar e, na sua forma única de declamar, Aurora Gaia pintou, com gestos e palavras, “Um Adeus Português”, “O Emigrante”, “Ode à Liberdade” e “Gaivota”, este último a convocar a música de Alain Oulman e a voz de Amália. Encerrada a sessão, os momentos finais foram de convívio, à volta de uma “Mesa dos Sonhos”, recheada de acepipes. Cantam-se os parabéns aos 100 anos do poeta, parte-se o bolo. Brindo com um cálice de Porto, despeço-me. Para trás fica O'Neill e as pessoas bonitas que tão bem o souberam lembrar. Fica a biblioteca e o momento “onde vi o necessário onde aprendi / que só entre os homens e por eles / vale a pena sonhar”.
Sem comentários:
Enviar um comentário