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domingo, 22 de dezembro de 2024

LIVRO: "O Meu Pai Voava"



LIVRO: “O Meu Pai Voava”,
de Tânia Ganho
Edição | Carmen Serrano
Ed. Publicações Dom Quixote, Julho de 2024


“A rapariga da agência perguntou se ele tinha um pacemaker. Se tivesse, seria preciso abri-lo, desligar não sei o quê, uns fios?, porque podia explodir, será que foi explodir que ela disse? Estávamos à mesa. Abri-lo? O corpo? Por instantes, não compreendi o que o meu irmão dizia. Mas abriram-no? Ele não tinha um pacemaker, pois não? Confusa, revendo os meus ficheiros mentais para perceber a que procedimentos o meu pai se sujeitara depois do enfarte. Há partes da minha vida que apaguei ou que são turvas, desfocadas. Quando o meu pai foi operado à coluna, onde é que eu estava, que não me lembro de o ter visitado no hospital? A ausência de recordações choca-me. Como é que eu, a filha querida, a menina do papá, não me recordo de ter estado à cabeceira dele quando o operaram à coluna?”

Tânia Ganho perdeu o pai no dia 24 de Fevereiro de 2024. O óbito foi declarado às 11 horas e 11 minutos. Chamava-se Edmiro e era urologista. Dizia a brincar que passava o dia “a ver pilas” e, nas impressões que trocava com a filha, a autora deste livro, tratava o corpo por tu, estabelecendo com ele “uma familiaridade saudável, sem tabus”. Tinha fama de despistado, mas gabava-se de nunca se ter esquecido de uma compressa dentro de um doente. Foi cinturão negro de karaté, astrónomo amador, inventor medalhado. Fazia pequenas reparações em casa, desmontava electrodomésticos, soldava peças, era um exímio arrombador de fechaduras. Ouvia Maria Callas em altos berros, sabia a “Tabacaria” de cor, louvava Zeca Afonso, idolatrava Salgueiro Maia. Escalava montanhas, dava pontapés na lua e voava. A memória começou a traí-lo alguns anos antes da sua morte, o Alzheimer a “fincar as gavinhas” na sua mente, o seu “lado cru, tão feio, tão triste” a tomá-lo aos poucos. Morreu sem conhecer ninguém, sem se conhecer a si próprio. Tânia Ganho quis que permanecesse vivo, que o conhecêssemos.

Adeus e encontro, distância e abraço, luto e celebração da vida. “O Meu Pai Voava” é um mergulho na intimidade, no mais fundo do eu, nesse território habitado por emoções desiguais e sentimentos contraditórios, no momento em que tudo se afigura “triste e ermo” com a partida do pai da escritora. “É o meu pai em cada palavra, e a realidade da sua ausência engole-me e revolve-me, sou roupa aos tombos no tambor de uma máquina de lavar”, lê-se nas páginas iniciais, o tom confessional posto em cada frase, a intimidade e cumplicidade com o leitor a revelar-se necessária e urgente. Nesta súmula de reflexões assente em (muitas) dúvidas e (poucas) certezas, Tânia Ganho porfia na busca de apaziguamento e reconciliação consigo própria: “Será possível falarmos de luto sem falarmos de nós?”, interroga-se. Dedica o livro à mãe, a mulher que do pai cuidou ao longo de seis décadas de vida em comum e que terá, como ninguém, sofrido com a perda, o não ter mais de lhe indicar onde estavam as camisas, as calças, o escolher de véspera o fato, a gravata, os sapatos, o acordar antes dele para lhe fazer um pequeno-almoço de café com leite, torradas e um ovo estrelado.

“Não sei para quem escrevo estas palavras. Para ele, talvez”. Mergulhada na dúvida, tendo como certo apenas o facto de se ter lançado num processo ininterrupto de escrita desde a morte do pai, Tânia Ganho perdoar-me-á a ousadia de lhe dizer que é para mim - para a pessoa que há em mim, não para o leitor que sou - que escreve. Demorei muito tempo, não a chegar a esta conclusão, mas a ter a certeza de que poderia, sem perda de outras reflexões que o livro suscita, partilhar com a autora e com os leitores do blogue este meu sentir. Ao abraçar a memória deste pai, vejo nele o meu próprio pai. Ao acompanhar Tânia Ganho na sua ânsia “para recuperar o fulgor com que ele viveu”, sinto essa mesma vontade de guardar ainda mais fundo as memórias de uma história de muitas décadas, certo do carácter finito da nossa existência. É nesta relação de proximidade com o leitor que as palavras de Tânia Ganho se erguem em amor e verdade, em humanidade e dádiva. No que encerra de conhecimento e experiência partilhada, “O Meu Pai Voava” revela-se fundamental no processo de preparação para o dia em que serei confrontado com a notícia da morte do meu próprio pai. Daí não haver limites para a admiração e profunda gratidão que devo à autora, pela sua coragem e generosidade, pelos caminhos que abre. Tânia Ganho sou eu e eu sou Tânia Ganho.

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