CONCERTO: Egberto Gismonti
Convidado especial | Daniel Murray
Auditório de Espinho – Academia
03 Dez 2024 | ter | 21:30
O concerto chegava ao fim. Egberto Gismonti pousava os dedos pela última vez nas teclas do piano e o público, o mesmo público que o chamou insistentemente ao palco e “forçou” dois encores, escutava-o agora num silêncio reverencial. A sequência de acordes levava-nos ao encontro de uma das valsas que António Gismonti, avô de Egberto, compôs “há 80 ou 90 anos”. Patriarca da família, foi ele o responsável pela música inculcada nos genes da numerosa descendência, que soube fazer dela um espaço de liberdade, partilha e gratidão. Num raro momento de coloquialidade - “dividir conversas”, chamou-lhe o artista -, foi emocionante ouvi-lo referir-se àquilo que cada um de nós, espectadores, faz com a música que escutamos, confessando-se “muito devedor” a todas as pessoas que, em sítios tão diferentes, “colocaram lá no seu caderninho, no seu telefone, uma marquinha dizendo espaço tal às tantas horas”. Olhando nos olhos os espectadores que, numa noite chuvosa, cansados após um dia de trabalho, enfrentando filas de trânsito, fizeram questão de o receber com um sorriso, Egberto Gismonti falou numa dívida que tem a ver com “responsabilidade, identidade e afecto”, que lhe dá a alegria de conhecer novas pessoas e que renova a sua esperança num mundo melhor. Um momento que marca, não apenas o concerto da noite da passada terça feira no Auditório de Espinho, mas toda uma temporada que está prestes a terminar.
Neste regresso a Espinho, Egberto Gismonti não veio sozinho, trazendo com ele Daniel Murray, um profundo conhecedor do seu universo musical e um dos mais talentosos violonistas da sua geração. Ao longo de quase uma hora e meia de concerto, os dois artistas tiveram a oportunidade de se mostrarem a solo ou em diálogo, oferecendo uma música onde popular e erudito se misturaram e confundiram. Num exercício de entrega total à música, a abordagem primordial revelou-se do domínio da clássica, mas foi genial a forma como deixou que a mesma se escapasse para o campo da música tradicional, levando-a a percorrer os caminhos dos batuques dos índios amazónicos, do choro carioca, do frevo pernambucano, dos nordestinos forró e baião. E há, ainda, essa aproximação íntima ao jazz, com os (muitos) espaços abertos à improvisação e onde veio ao de cima a sua classe e experiência, cimentadas numa carreira de mais de cinquenta anos, com cerca de sete dezenas de álbuns gravados e colaborações com nomes incontornáveis como os de Charlie Haden, Jan Garbarek, John McLaughlin, Keith Jarrett ou Herbie Hancock, e outros menos previsíveis como Sapaim, mentor espiritual da tribo Yawalapiti. Desta mescla de géneros se fez o concerto, sem alinhamento definido mas com a certeza de que a música é o guia e o norte, a religião e a fé.
À excepção de “Retrato em Branco e Preto”, tema incontornável da discografia de António Carlos Jobim, não saberia identificar as músicas que fizeram parte do alinhamento do concerto. Sentado ao piano ou com o violão de dez cordas nas mãos, os longos cabelos brancos presos na inseparável touca, o que Egberto Gismonti fez foi empreender uma viagem afectiva pelo mundo da música, percorrendo um conjunto de temas que lhe são queridos - e onde marcam presença, além dos nomes já referidos, Chico Buarque e Dorival Caymmi, Villa-Lobos e Pixinguinha -, mistura do popular com o erudito - quase posso jurar que por aqui passou “Strawa no Sertão”, o seu maxixe, a sua zabumba. A sós em palco com o piano ou o violão, ou na companhia de Murray, Egberto Gismonti foi desfiando as suas influências indígenas e orientais, cruzando-as com a música clássica e a música de vanguarda, num caleidoscópio coeso e verdadeiramente original. Entre a admiração e a diversão, o público não se cansou de aplaudir calorosamente cada tema interpretado, mantendo uma enorme atenção ao longo de todo o concerto – o que não impediu, infelizmente, que um espectador passasse uma boa parte do tempo a descascar rebuçados e a poluir o sublime da música com os estalidos irritantes do celofane. E chegamos à parte final, àquele momento único cuja generosidade e humildade a todos tocou profundamente. Mas disso já aqui falei.
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