LIVRO: “A Arte de Ser Boa Pessoa”,
de Vítor Pinto Basto
Ed. Arqueu Editora, Outubro de 2024
“Ali, no hospital, o que ela sentiria, se conseguisse explicar, ou o que julgaria sentir porque a doença alastrara, é que na maioria das vezes não conseguia identificar quem tinha a seu lado. Quando estava nessa estranheza de ser a personagem principal de um mundo com rostos sem nomes, que não conseguia identificar, a memória pregava-lhe a rasteira do costume. Se conseguia encontrar formas nas sombras as palavras saíam-lhe da boca sem os sons da clareza. Nessa lentidão dos desapegados, por vezes libertava frases repetidas com cansada interrogação. E não se importava com o que ouvia. Perguntava sem esperar pela resposta. Nesse atarantamento, voltava a perguntar. Mesmo que lhe dessem a resposta e fosse verdadeira, ela repetia a pergunta. Voltou a perguntar:
- Tu não és meu filho, pois não?”
Chega-se ao fim de “A Arte de Ser Boa Pessoa” com um sorriso no rosto e um calorzinho no peito, que nos conforta e faz bem. É uma sensação estranha, talvez porque o livro trate de assuntos do quotidiano mais banal e isso, de acordo com o cânone, não é matéria-prima da grande literatura. E há ainda a questão do preconceito à volta do título, a remeter para aquela “coisa” da auto-ajuda e para as virtudes, tim-tim-por-tim-tim, desses “antidepressivos motivacionais”. Pois bem, às urtigas com o cânone e mais o preconceito. A sensação estranha advém do facto de não ser comum, nos dias de hoje, ler alguém que faz tábua rasa de distanciamentos sociais e afins, nos põe a mão no ombro e nos conta, olhos nos olhos, uma história que (também) é nossa. É na verdade que se abriga nas suas linhas, neste trazer para diante o que muitos pretendem que permaneça escondido, no ser de todos o que é de cada um, que encontramos os méritos de um livro cuja ambição não vai além de ver respondida uma questão muito simples: “Andamos a escrever sobre o que realmente interessa?”
E o que realmente interessa? A literatura interessa, ou não fosse esta a história de um livreiro, atravessada por nomes, referências, citações e pistas de leituras, entre Rosalía de Castro e José Gomes Ferreira, heterónimos e livros proibidos, as tertúlias do Piolho e o poeta Veiga, Simone de Beauvoir e “A Velhice”. A música também interessa, o livro ilustrado por uma “banda sonora” que inclui propostas tão diferentes como “Run” dos Snow Patrol, “The Man I Love” de Hindi Zahra, “Le Jardin du Luxembourg” de Joe Dassin, “Estou Além” de António Variações ou as “Baladas e Canções” do Zeca. Os amigos interessam, mesmo que já lhes tenhamos perdido o rasto e que, por mero acaso, estejam de regresso às nossas vidas, trazendo com eles pedaços de um passado que parecia arrumado. Os lugares interessam muito, o livro a olhar um Porto na moda - um hotel e dois restaurantes em cada esquina, lojas de pechisbeque asiático ditas de artesanato por todo o lado -, uma cidade a viver um paradoxo identitário, a perder carisma, os turistas como “apreciados tripeiros numa cidade sem tripeiros”. Enfim, as coisas boas da vida também interessam, sejam elas um bom charuto ou um Vintage de 1994 que até se mastiga.
Mas é a vida, sobretudo a vida, que interessa. A vida e aquilo que fazemos com ela. E é aqui que os passos de escritor e do leitor se cruzam mais intensamente, o mundo como um T1 com kitchenette. “Às vezes fico a pensar que há tanta coisa banal, tão importante, por valorizar”, escreve Vítor Pinto Basto, fazendo desta simples frase um manancial inesgotável de intenções. E assim, muito de mansinho, vai-nos dando a ver uma maca num corredor da urgência do hospital, um corpo que luta e resiste, as garras silenciosas da demência, as mortíferas bactérias hospitalares, as virtudes do Zolpidem. Os abanões na estrutura familiar, que parecem abanar só para um lado. A eterna disponibilidade para escutar o outro, para telefonar ao outro, para aturar as suas extravagâncias, para atender os seus pedidos. A arte de ser boa pessoa, em suma, que convida a falar com as plantas, a fazer uma caminhada, a apreciar a paisagem que vai de Ovar a S. Jacinto, a ria com os seus canais, as suas gentes, o róseo dos seus flamingos. Talvez agora se perceba melhor o sorriso no rosto e o calorzinho no peito de que falei acima, como se perceberá a nota de gratidão pela generosidade e humanidade que se destacam das páginas de um livro que interessa.
Abriu-me o "apetite" vou comprar!
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