CONCERTO: Dee Dee Bridgewater | We Exist!
FIME – 50.º Festival Internacional de Música de Espinho
Auditório de Espinho – Academia
22 Jul 2024 | seg | 22:00
Há uma gargalhada a romper o silêncio. Há um punho que se ergue contra a intolerância e o preconceito. Há palavras que são expressão de raiva e de dor. E há um grito que afirma a vontade de todas as mulheres: Nós Existimos! [“We Exist!”] Sim, o quarteto de Dee Dee Bridgewater trouxe a Espinho a sua música, naquele que foi um dos momentos mais aguardados do FIME e que colocou um ponto final numa edição memorável. Mas, mais do que “o timbre quente, a dicção impecável e o swing irrepreensível” desta autêntica lenda viva do jazz e das suas três acompanhantes, o concerto constituiu uma declaração de princípios no reconhecimento daquilo que nos distingue e uma tomada de consciência das lutas que mulheres como Bridgewater travaram e continuam a travar em sociedades onde o racismo, a xenofobia e a misoginia são autênticas feridas abertas nos ideais de liberdade, igualdade e justiça que dizem defender.
Oferecer terá sido, porventura, a palavra mais escutada em duas horas (!) de concerto. À dádiva da música juntou-se a dádiva da palavra e da voz, vertida em gratas memórias de uma geografia afetiva onde não faltou um inesquecível jantar de marisco e as palavras apaixonadas de quem lamenta a iminente separação e vive na esperança do reencontro. Ao lado das muito jovens Carmen Staaf (direcção musical, piano, teclados), Rosa Brunello (contrabaixo, baixo eléctrico) e Evita Polidoro (bateria), Dee Dee Bridgewater revisitou alguns temas icónicos das chamadas “canções de protesto”, lembrando o impacto do activismo e da música no curso da História e apelando à consciencialização social. Ainda antes de começar, a cantora mencionou o seu quarteto como a certeza da presença das mulheres no mundo do jazz [“we exist!”] e saudou a (possível) candidata do Partido Democrata à presidência dos Estados Unidos da América, Kamala Harris, dizendo-se “excitada”.
“People Make The World Go Round”, tema de 1971 da banda “The Stylistics”, deu o mote a uma noite inesquecível, chamando para primeiro plano as injustiças num mundo dominado pelo poder do dinheiro. Percy Mayfield e Ray Charles subiram à cena com “The Danger Zone”, extraordinário blues que olha a realidade histórica da América no início dos anos 1960, expressando medo e decepção pela discriminação e pelo ódio racial que teimavam em manter-se. No momento seguinte, foi a vez de Roberta Flack e Donny Hathaway se mostrarem em “Trying Games”, um grito de denúncia com o dedo apontado a cada um de nós: “People always talking about man's inhumanity to man / But what is you tryin' to do to make this a better land?”. Pegando no seu instinto em busca das suas raízes africanas, algures no Mali, Dee Dee Bridgewater acrescentou palavras suas à música de Wayne Shorter e ofereceu-nos “Long Time Ago / Footprints”, dando a ver as pegadas como algo passível de nos fazer recuar no tempo e abraçar as mais gratas recordações.
Espontânea e natural, com uma gargalhada desarmante e um apurado sentido de humor, Dee Dee Bridgewater voltou ao jantar de marisco e ao delicado ofício de descascar gambas – um momento que definiu como uma experiência gastronómica “orgasmática” –, antes de prosseguir com “Mississippi Goddam”, um hino activista da causa negra escrito por Nina Simone em 1964, um grito de revolta contra o assassinato de quatro crianças negras numa igreja de Birmingham, no estado do Alabama, no ano anterior. “My skin is black / My arms are long / My hair is woolly / My back is strong / Strong enough to take the pain / Inflicted again and again” são palavras de Nina Simone e do forte e poderoso “Four Women”, talvez o momento mais alto da noite. Até ao final do concerto ouve ainda tempo para escutar “Afro Blue”, um tema de Mongo Santamaria que Bridgewater dedicou a uma das traves mestras da organização do Festival, André Gomes, e ainda “Compared to What” e, já no encore, “Spain”, temas evocativos de nomes tão importantes como Les McCann e Eddie Harris, Al Jarreau e Chico Korea. No final, a artista reafirmou a sua raiva, insatisfação e desapontamento com a política do seu país e deixou-nos aquilo que deve ser interpretado como um pedido e, sobretudo, como um conselho: “Keep your country safe!”
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