LIVRO: “Nas Suas Mãos”,
de Leïla Slimani
Título original | “À Mains Nues” (Edition Les Arènes, Paris, 2020-2021)
Ilustrações | Clément Oubrerie
Tradução | Tânia Ganho
Edição | Amaia Iglesias
Ed. Iguana, Abril de 2024
“Ao Hospital do Val-de-Grâce, chegam cada vez mais soldados com ferimentos no rosto. Isolamo-los dos outros doentes, por causa do terror que suscitam e do cheiro pestilento que se solta dos seus ferimentos. / As más-línguas chamam-nos o ‘serviço dos babam-se todos’, por causa dos ferimentos terríveis que fazem com que os soldados fiquem sem maxilares. / Na sala enorme onde eles estão fechados, ecoam os gritos de dor e de desespero. Escondemos todos os espelhos e tememos suicídios… / O Morestin já nem dorme, trabalha dia e noite para desenvolver novas técnicas de enxerto e lhes devolver uma aparência humana. / Dizias que ele era um velho louco. Ai, querido André, talvez tenhas razão. Volta depressa.”
Pese embora o seu pioneirismo na cirurgia estética e reconstrutiva, a História parece ter-se esquecido de Suzanne Noël (1878-1954). E, todavia, ela foi uma verdadeira percursora daquilo a que mais tarde viríamos a conhecer como lipoaspiração, devolvendo beleza – e anos –, tanto a mulheres que não se sentiam bem com o seu corpo (a actriz francesa Sarah Bernhardt terá sido um dos seus casos de maior sucesso), quanto aos muitos sobreviventes da I Guerra Mundial que, com o “rosto quebrado”, beneficiaram dos seus conhecimentos na recuperação da imagem e consequente possibilidade de uma reintegração social plena. Mas não foi apenas no campo das ciências que Suzanne Noël se notabilizou. Dedicando grande parte da sua vida à defesa dos Direitos Humanos, fundou o primeiro clube soroptimista francês, abraçando o movimento sufragista e lutando pelo direito ao voto das mulheres. Hoje, as cartas constitutivas dos novos clubes soroptimistas são concedidas em nome de Suzanne Noël e existe uma bolsa de estudos com o seu nome, contribuindo para a especialização médica em Cirurgia Plástica.
Resgatar a figura de Suzanne Noël, a sua influência no seio da academia e o muito que acrescentou a uma especialidade mal vista pelos pares e cuja vertente estética chegou a ser proibida por lei, terá sido um dos valores que levou Leïla Slimani a escrever sobre esta mulher de uma forma tão próxima. O outro terá tido a ver com o seu pendor de feminista convicta, aí se revendo na luta de Suzanne Noël contra o preconceito e pelo reconhecimento do seu trabalho numa sociedade particularmente misógina. Do nascimento de Suzanne Noël em Laon, no seio de uma família burguesa, à divulgação empenhada dos princípios do soroptimismo que mobilizaram todas as suas forças numa fase mais avançada da sua vida, passando pelo seu casamento e posterior divórcio com o dermatologista Henri Pertat, os trabalhos com o Dr. Morestin em Val-de-Grâce e com o Professor Brocq no Hospital Saint-Louis, um segundo casamento com André Noël, a morte da sua filha Jacqueline e posterior suicídio de André, a sua entrega à causa feminista e as múltiplas solicitações para palestrar em todo o mundo, de tudo isto Leïla Slimani dá conta com rigor biográfico e uma enorme sensibilidade.
Não deixa de ser surpreendente que Leïla Slimani tivesse optado por uma banda desenhada para falar de uma das suas heroínas, demonstrando que a sua escrita pode afastar-se dos tons carregados que a povoam e que tão bem se distinguem em livros como “O Perfume das Flores à Noite”, “No Jardim do Ogre” ou “Canção Doce”. A escritora mostra um apurado domínio dos tempos inerentes ao desenho, deixando espaço aberto à imaginação, só em parte preenchida pelo trabalho de ilustração de Clément Oubrerie. Se, com frequência, “tropeçamos” em momentos narrativos brilhantes e plenos de humor- a conferência de Raymond Passot face a uma plateia hostil, os primeiros dias de Suzanne e Jacqueline no apartamento de Montmartre, as recomendações à Dra. Irène Duval antes de Suzanne partir em viagem -, não menos frequentemente damos conta de “cartões” de uma enorme expressividade e beleza - uma aula do Dr. Brocq no teatro anatómico, Suzanne e os colegas a atravessarem a praça de um quarteirão de Paris, uma panorâmica do “serviço dos babam-se todos”. Um livro que se lê com redobrado interesse e que, combinando a arte da escrita e a arte da ilustração, recupera a imagem de uma mulher muito à frente do seu tempo, cujo exemplo de coragem e empenho é um farol nos dias que correm.
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