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domingo, 19 de novembro de 2023

CONCERTO: Hauschka



CONCERTO: Hauschka
Misty Fest 2023
Auditório de Espinho
18 Nov 2023 | sab | 21:30


Volker Bertelmann, dizem, é um madrugador. Durante essa hora azul, quando tudo é paz e sossego, o compositor-pianista alemão - cujo nome artístico é Hauschka - faz dos seus dedos uma extensão da mente e, de forma inspirada, transforma em música o que lhe vai na alma. A verdadeira magia, porém, acontece quando despeja sobre a bancada o “cesto do lixo”, de lá retirando fita adesiva, alfinetes, bolas de ping-pong, peças de dominó, pinças de madeira, parafusos, pandeiretas, pedaços de corda, um lenço de feltro. Tudo isto ele incorpora no piano, alterando tons e sons, provocando os efeitos mais inesperados e descobrindo nele as potencialidades de um contrabaixo ou de uma bateria. John Cage, o inventor desta técnica, já espantava o público em finais da década de 1930, com o atrevimento das suas criações, não sendo raro, nos dias de hoje, vermos um pianista fazê-lo nalgumas composições (Amaro Freitas é o nome que me acorre de imediato à memória). Mas Hauschka vai mais longe e faz do concerto um exercício de “piano tuning” integral. O resultado pode ser surpreendente.

Foi justamente Hauschka que, à boleia da edição de 2023 do Misty Fest, visitou Espinho, cidade onde passeou “em recolhimento” à beira-mar, o que o levou a estabelecer uma improvável comparação com as florestas da sua Alemanha natal, pela tranquilidade que transmitem. Em frente a um piano já totalmente “armadilhado” e com uma pequena mesa de mistura ao lado, o vencedor deste ano do Óscar para Melhor Banda Sonora Original (pelo filme “A Oeste Nada de Novo”, de Edward Berger) começou por traçar as linhas gerais do seu mais recente trabalho, “Philanthropy”, apresentado num único “take” ao longo de pouco mais de uma hora. Falou, sobretudo, do que o inspira, de empatia para com o outro, afinal aquilo que resta depois de sermos abalados por uma catástrofe, seja ela de causas naturais ou tenha origem numa guerra, por exemplo. Daí os votos para que o tempo do concerto pudesse constituir uma viagem, um tempo de preciosa partilha em torno daqueles que nos são mais queridos, mas também daquilo que nos aproxima uns dos outros, a magnanimidade, o altruísmo, a compaixão, a generosidade e a dádiva.

O meu olhar pessoal sobre o concerto é o de quem esteve a apreciar um belíssimo carro, último modelo do topo dos topos de gama. Nas suas linhas, vejo a eficácia aliada à técnica. Na “bizarria” dos acessórios há o potenciar das performances. As cores inquietam mais do que serenam. Do motor saem sons estranhos que me fazem recuar dois passos antes de voltar a chegar-me à frente. Acomodados os sentidos, é com admiração que encaro o objecto. Sem ser belo, é admirável, sim. Imagino uma viagem neste carro, mas não consigo que os sentidos se conjuguem na minha mente. Que tipo de veículo é este? Não sinto que se alce num voo e me leve a atravessar as nuvens ou, mais além, a viajar pelo espaço sideral. Também não me vejo a descer nele às profundezas do mar. Não há cidade onde o seu som se encaixe, tão pouco vales ou montanhas onde possa aliar o prazer da viagem às paisagens que me rodeiam. Fico-me pela contemplação do objecto. Uma bela máquina, sem dúvida, mas que não me leva a lado nenhum.

[Foto: Auditório de Espinho - Academia | https://www.facebook.com/auditoriodeespinhoacademia]

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