LIVRO: “Cada Gesto Essencial”,
de Raquel Patriarca
Ed. Officium Lectionis Edições, 2022
“Escrevi um poema naqueles dias
Em que vi o mundo a encolher.”
Essencial, o gesto. O gesto de abraçar uma tília, aproximar a chávena do rosto, pousar o lápis, escrever uma carta. Erguer o corpo a cada manhã, abrir as portadas da varanda, sair para a irrealidade azul da noite, atravessar a rua, procurar um lugar próprio para o encontro. Sentar no lugar dos sonhos, “os pés como pêndulos em descuidado”. Em cada gesto a mesma gentileza, o mesmo abrigo. No olhar pousado na flor branca, “entre o granito e o pensamento”, como na urgência do poema escrito naqueles dias em que se vê o mundo a encolher. O gesto que se faz palavra, “gesto opaco como o vento, verso breve como o mar”. Gesto simples, autêntico, que se dá em abraço, torna o instante em alegria, traz consigo a certeza “que o amor pode quase tudo e que um dia o tempo poderá o resto.”
Essencial, a escrita. Porque é ela o fermento que digere o que assusta e afasta, tudo aquilo que não se entende, esse “arder de ideias em labaredas de febre e insónia”. Escrita que molda a circunstância de imaginar, não como um mecanismo de controlo, antes de depuração, de pacificação. A mesma escrita que põe palavras nos pensamentos e sentimentos, nas emoções e experiências, que preenche e alenta, que traz em si o estro e a cura. Espontânea, honesta, genuína, carregada de verdade, assim é a escrita de Raquel Patriarca, chão e casa, berço de memórias, ninho de afectos. Escrita que é dádiva, partilha. Que se abre em aconchego numa coberta de lã sobre o regaço, num canto de embalo antigo, numa história tímida, num verso feito de puro nada. Que é gesto de gestos essenciais.
Essencial, a poesia. Essencial procurar um lugar para o silêncio, “onde possa sentar-me imóvel no redor do mundo”. Essenciais as conversas sem destino, estes versos que nos dizem que “para ser inteiro basta querer bem a alguém”. Essencial rever a lista de compras, uma, duas, três vezes (não vá esquecer “os temperos e demais utensílios do cheiro”). Essencial a ideia e a herança, o canto da janela, a morte da ilusão, a circunstância de imaginar. Qualquer sucedâneo do papel. Essencial todos os poemas todos. Essencial lê-los em recolhimento ou em voz alta, com fato domingueiro ou em calção e chinelos de dedo, na penumbra do quarto ou no meio da praça em dia de mercado. Essencial partilhá-los com a mulher e com os filhos, com a vizinhança, os colegas de trabalho, a gente anónima com quem nos cruzamos na rua, no café, na barbearia. Essencial ter sempre à mão “Cada Gesto Essencial”. Essencial lê-lo. E amá-lo.
Sem comentários:
Enviar um comentário