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segunda-feira, 20 de novembro de 2023

CINEMA: “O Projeto Literário - Crónicas de Júlio Dinis em Ovar”



CINEMA: “O Projeto Literário - Crónicas de Júlio Dinis em Ovar”
Realização | Rui Pedro Lamy
Argumento | Rui Pedro Lamy
Coordenação científica | Ana Soares Ferreira
Entrevistas | Maria Almira Soares, Joaquim Jorge Carvalho, Ana Soares Ferreira
Direcção de fotografia | António Morais
Montagem | Rui Pedro Lamy, Patrícia Gomes, Francisco Costa
Banda sonora original | Fernando Rodrigues
Interpretação | Pedro Damião, Alexandra Gondin, Manuel Ramos Costa, Sílvia Santos, Beatriz Duarte, Carlos Almeida, Iara Duarte, Miguel Duarte, Luís Ribeiro, Nuno Guerra, Rogério Pacheco
Figuração | Contacto - Companhia de Teatro Água Corrente de Ovar, Grupo Folclórico “Os Moliceiros de Ovar”
Produção | Rui Pedro Lamy, António França
Coordenação geral | José Licínio Pimenta, António França
57 Minutos | Todos os públicos
Centro de Arte de Ovar
19 Nov 2023 | dom | 16:00


Tréguas por um instante nesta áspera fuzilaria irónica! Esta página é um parêntesis tranquilo e meigo, onde pomos a lembrança de Júlio Dinis. Que as pessoas delicadas se lembrem dele e se recolham um momento: recordá-lo é aprender a amá-lo; e nós, ainda não sabemos recordá-lo bastante. Tanto é o nosso mal que este espírito excelente não ficou popular: a nossa memória, fugitiva como a água, só retém aqueles que vivem ruidosamente, com um relevo forte: Júlio Dinis viveu de leve, escreveu de leve, morreu de leve!
Eça de Queirós, As Farpas

“Quando encontramos em um livro pensamentos que já tivemos um dia, sentimos agradável surpresa, como ao darmos em um lugar, inesperadamente, com uma pessoa conhecida; [quando no carácter, no coração de uma personagem literária há alguma coisa que é nossa], quando nos reconhecemos em parte personificados numa criação, redobra o interesse com que o acompanhamos nas peripécias do drama.” As palavras são de Júlio Dinis e podemos encontrá-las no volume póstumo “Inéditos e Esparsos”, que reúne textos inéditos ou dispersos do escritor. São elas que escutamos no início de “O Projeto Literário - Crónicas de Júlio Dinis em Ovar”, documentário da autoria de Rui Pedro Lamy, e que servem, neste caso, de carta de intenções. Aproximar o escritor daquilo que somos enquanto comunidade, encontrarmos nele uma parte sensível da nossa identidade, reconhecermo-nos na genuinidade de lugares e personagens tão afectuosamente recriados, abraçá-lo como um dos nossos, é cumprir com os objectivos deste singular projecto: Recuperar a figura do escritor “esquecido, subalternizado, diminuído na sua relevância para a história da literatura portuguesa”, como é referido no documentário pela investigadora e professora de literatura Ana Soares Ferreira.

No encerramento das comemorações dos 160 anos da passagem de Julio Dinis por Ovar, o documentário foi apresentado em ante-estreia na tarde de ontem, esgotando por completo o Auditório do Centro de Arte de Ovar. “O Projeto Literário - Crónicas de Júlio Dinis em Ovar” surge na sequência da prática reiterada de abrir à criação e aos criadores esse verdadeiro laboratório artístico que é o Museu Júlio Dinis, promovendo um conjunto de residências nas mais diversas áreas. De 28 de Agosto de 2020, data em que o projecto começou a ser sonhado, até ao passado domingo e ao momento da sua apresentação, o documentário foi crescendo nas suas premissas e na sua ambição. A criação de um conteúdo que pudesse ser importante do ponto de vista museográfico, algo que acrescentasse valor às visitas ao Museu Júlio Dinis e que, em simultâneo, pudesse estabelecer uma ligação entre a figura do escritor, o território e a comunidade, terão sido desde sempre as linhas orientadoras do projecto. Hoje, mais de três anos volvidos, com cento e dez horas de filmagens distribuídas por treze dias de gravações, o envolvimento de uma equipa de cento e dezanove pessoas, entre as quais o compromisso de cinquenta e dois figurantes, e de um tempo imenso de “preparação, produção e discussão”, o resultado é muito positivo e dele se devem orgulhar os envolvidos e todos nós, cidadãos desta terra que foi e é de Julio Dinis.

Do mal-estar inicial, de uma certa aversão à terra onde se instala e às suas gentes, até um tempo que será muito mais que de mera aceitação, antes deve ser visto como de afecto e estima - porquanto serve de ensaio à sua arte literária, à concepção do romance como género “essencialmente popular”, em favor do “comum, do vulgar” em que o leitor se possa reconhecer -, irá o curto espaço de dois meses. Nesse entretanto, encontrará Júlio Dinis a motivação e o interesse em entregar-se a uma exaustiva viagem pelo tecido social vareiro, trabalhando na recolha de usos e costumes, questões de género e de classe, complexidades do real e do aparente, encontrando aí a base dos seus muito aclamados romances. Disto dá conta o documentário, na boleia de um carro de bois como nas mulheres que lavam no rio, no escolher do feijão à lareira como numa desfolhada seguida de bailarico. “Nunca fui tão feliz na minha vida”, refere o escritor, num dos momentos mais belos do filme. Júlio Dinis parte de Ovar em Setembro de 1863. Na bagagem leva o esboço escrito entre Julho e Agosto de “As Pupilas do Senhor Reitor”. De Ovar levou inspiração para as suas “crónicas da aldeia”. Em Ovar terá consolidado o seu projecto literário. Que em boa hora se revisita, em palavras de enorme significado e de viva emoção e em imagens de inquietante beleza.

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