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quinta-feira, 24 de agosto de 2023

EXPOSIÇÃO: "In My Own Language I Am Independent"


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EXPOSIÇÃO: “In My Own Language I Am Independent”,
de Carla Filipe
Curadoria | Marta Moreira de Almeida
Organização | Fundação de Serralves
Museu de Arte Contemporânea de Serralves
24 Mar > 17 Set 2023


Artista multidisciplinar, autora de uma obra que explora criticamente a relação entre objetos de arte, cultura popular e activismo, Carla Filipe é uma das artistas mais marcantes do actual panorama artístico em Portugal. Ancorado no desenho, em experiências pessoais e numa acepção da autobiografia enquanto arquivo experimental da contemporaneidade, o seu processo criativo resulta da apropriação de artefactos e documentos com que é construída uma forma própria de retrato social e, simultaneamente, de autorretrato. Aproximando-se das metodologias da antropologia, a artista observa, recolhe, entrevista e documenta vestígios de narrativas individuais e coletivas, interpelando de modo idiossincrático as discursividades convencionadas acerca do passado recente e da própria atualidade. Neste processo, aborda conteúdos tão transversais quanto as noções de território, trabalho, propriedade, memória, identidade ou representação. São estes os temas presentes nesta exposição antológica da artista no Museu de Serralves, que reúne obras produzidas ao longo de cerca de duas décadas de trabalho.

O título da exposição, “In My Own Language I Am Independente”, é retirado de uma inscrição da própria artista numa imagem do seu arquivo fotográfico. Sem preconceitos e com uma grande liberdade, Carla Filipe erige uma plataforma de criação e de análise única sobre as transformações políticas, económicas, sociais e culturais do passado e do presente, através de um pensamento sem fronteiras geográficas. Nascida numa família de ferroviários, apropria-se de formas e sinaléticas que fazem parte do universo dos caminhos de ferro para falar da estrutura social de Portugal no século XX. O título da obra “Memorial ao Vagão Fantasma” retrata um episódio histórico da greve dos trabalhadores dos caminhos de ferro em 1919. Já as bandeiras que compõem o conjunto são elaboradas a partir de cartazes sindicais do período pós-25 de Abril de 1974, ampliando uma narrativa reivindicativa dos direitos laborais e sociais. A própria disposição dos pendões, numa arquitetura instável, transporta-nos para espaços e ambientes efémeros ligados a manifestações públicas ou comícios políticos.

Em “As Casas Desejadas”, é feita referência aos bairros construídos entre as décadas de 1910 e 1920 para os guardas das Passagens de Nível e suas famílias. A criação destes complexos arquitectónicos foram importantes no combate ao problema da habitação, potenciando o crescimento urbano do país. Ainda dentro deste contexto da história dos caminhos de ferro, Carla Filipe tem vindo a construir e plantar hortas que funcionam como visão alternativa de modelos de organização comunitária e social. Intituladas “Migração, resistência e exclusão”, estas instalações in situ, compostas por plantas alimentícias não-convencionais, colocam em discussão a seleção entre o ornamento, a sobrevivência e a exclusão. Por outro lado, “Ordem de Assalto” remete para a distribuição e o racionamento de bens alimentares, acções de resposta a situações de precariedade e instabilidade social. Concebida durante o período da troika, esta peça evidencia um forte pendor político ao evocar a memória histórica das condições sociais e económicas precárias com que muitas famílias viviam em Portugal no início do século XX, comparando-as com as verificadas um século depois, numa sociedade global marcada por grandes clivagens na divisão da riqueza.

Uma das salas tem as paredes revestidas por trabalhos gráficos maioritariamente de produção recente, apresentando-se ao público como verdadeiros murais que testemunham as indagações e o modus operandi da artista. Obras como “Celas”, “Paisagens Pedonais Noturnas” ou “Escape from Reality”, resultam da observação atenta, perscrutadora e muitas vezes irónica do que a rodeia, e de um sistemático trabalho de recolha de dispositivos de comunicação que são depois intervencionados e reinterpretados. No decurso da visita somos igualmente confrontados, através das obras expostas nas paredes e em mesas-vitrina, quer com a multiplicidade de meios com que Carla Filipe desenvolve as suas pesquisas, quer com os seus processos subjetivos de “trabalho de campo”. Na série “Bordas de Alguidar”, por exemplo, Carla Filipe reutiliza o grafismo de revistas de sátira política criadas no final do século XIX por Rafael Bordalo Pinheiro, transpondo todo um universo crítico e caricatural para a realidade portuguesa do século XXI. Ao Zé Povinho bordaliano juntam-se agora novas personagens do meio político nacional e internacional, protagonistas na governação de um Portugal com dificuldades em incrementar os seus sectores produtivos e em investir em áreas como a educação e a cultura.

Numa outra sala são apresentadas obras de várias cronologias que, mais uma vez, traduzem a atitude não passiva de Carla Filipe perante a sua pulsão de arquivo. Entre outros, os trabalhos das séries “Falar das coisas como elas são”, “Trabalho”, “Introdução à Economia” e “Mastigar papel mastigado e cuspir o velho continente”, resultam de uma reflexão sobre a relação subjectiva que todos temos com os testemunhos visuais da sociedade de hoje e sobre o poder da imagem e da palavra nos processos individuais ou coletivos de construção, fixação e manipulação da memória e da identidade. Na última sala da exposição são apresentadas as obras das séries “Família” e “Ser pós-moderno em Portugal”, de foro mais íntimo, onde se incluem registos soltos ou cadernos gráficos que revelam a génese de um contínuo trabalho marcado pela importância da expressão primária do desenho e da sua relação com a palavra. Aqui, podemos ver em potência e em síntese tudo o que é apresentado ao longo da exposição, tornando-se evidente como as experiências pessoais e a realidade quotidiana — a família, os amigos, a rua, a própria arte — são para a artista a matéria-prima que deve ser colectada, arquivada, registada e interpretada para, depois, se reinventar em novas imagens, textos e objectos.

[Texto composto a partir do Roteiro da Exposição]

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