LIVRO: “Pedro Páramo”,
de Juan Rulfo
Título original | “Pedro Páramo” (1955)
Tradução | Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues
Ed. Cavalo de Ferro, Junho de 2017, 3ª edição (Abril de 2004, 1ª edição)
“ (…) - Não sei, Juan Preciado. Há já tantos anos que não erguia a cara que me esqueci do céu. E ainda que o tivesse feito, que teria eu ganho? O céu está tão alto e os meus olhos tão sem olhar que vivia contente só por saber onde ficava a terra. Aliás, perdi todo o interesse que nele tinha desde que o padre Rentería me garantiu que nunca conheceria a Glória. Que nem de longe a veria… Foi por conta dos meus pecados, mas ele não mo deveria ter dito. A vida já de si é cheia de trabalhos. A única coisa que faz com que alguém mexa os pés é a esperança de que, ao morrer, nos transportem de um lado para o outro; mas quando nos fecham uma porta e a que fica aberta é apenas a do Inferno, mais valia não ter nascido… O Céu para mim, Juan Preciado, está aqui onde estou agora.”
Solitário romance do escritor mexicano Juan Rulfo, “Pedro Páramo” é uma imensa fábula humana envolta no manto fascinante do realismo mágico. Vincadamente surrealista, sinuoso e nostálgico, o livro fala-nos do passado de Comala e dos seus habitantes e tem como ponto de partida Juan Preciado, filho não reconhecido de Pedro Páramo, que chega à aldeia para conhecer o pai. Embora breve e com um enredo aparentemente simples, o romance é de uma enorme complexidade, alternando e confundindo linhas temporais que se deslocam entre o presente de Juan Preciado e o passado de Pedro Páramo. Os vários enredos que implicam as figuras secundárias concorrem para adensar a trama, transformando o livro num verdadeiro quebra-cabeças para o leitor. Não é raro que algumas páginas exijam uma segunda leitura para perceber onde estamos ou com quem se está a lidar. Mas a intenção de Juan Rulfo é justamente essa: transpor para as páginas do romance a dose certa de mistério e magia ao ponto de confundir o leitor e de o lançar na busca de um sentido para tão invulgar história.
Veja-se o início do livro, a longa caminhada de sobe e desce no dorso de um burro, o encontro com o almocreve Abundio que diz também ser filho de Pedro Páramo, a primeira noite na casa de Eduviges Dayda. Não consigo recordar um começo tão intenso e intrigante como o deste livro, daqueles que nos prendem de forma irremediável e nos dão a certeza de termos “noitada” pela frente. De facto, assim é. Mergulhar a fundo no romance é sentirmo-nos levados por essa magnífica sensação de flutuar, de viver uma experiência alucinante, surreal, enquanto deixamos que o realismo mágico faça das suas. Na obra de Rulfo isso é mais do que evidente; a presença de visões fantasmagóricas e as conversas dos mortos entre si potenciam essa sensação mágica. O tema da morte, aliás, é uma constante no romance, não surgindo nunca numa perspectiva sombria ou melancólica, antes dando-se a ver de uma forma divertida e nostálgica à vez. Genuínos, incisivos e inteligentemente divertidos, os diálogos permitem ao leitor entrar na alma das personagens, ao encontro dos sentimentos que as assolam.
Teses, dissertações, análises, cruzamentos entre a literatura, o cinema, a fotografia ou a sociologia, tudo isto “Pedro Páramo” proporciona com abundância. Não tenho dados para o afirmar peremptoriamente, mas acredito que seja dos livros mais “estudados” do mundo. E, afinal, “Pedro Páramo” é simples como um conto. Um conto recheado de mistérios que ali são deixados para que o leitor os possa resolver. As suas histórias são delirantes, as personagens estão presas entre si pela sua extravagância. Nele encontramos, muito disfarçadamente, os mitos maiores que a literatura nos vem oferecendo através de clássicos como “O Monte dos Vendavais” ou “Crime e Castigo”, “Dom Quixote” ou “Moby Dick”. Como Juan Preciado, talvez o leitor encontre, enfim, a sua própria paixão, o seu próprio amor, o seu próprio reconhecimento. “O destino ter-se-á, então, cumprido fora das páginas do livro em cujo centro o gado muge, uma pedinte embala um mono como se fosse uma criança porque ali lhe sucedeu uma desgraça, noutros tempos, e o silêncio procura desesperadamente a palavra”.
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