TEATRO: “Sabão Potassa - Estórias d’Alma Lavada”
Projecto artístico multidisciplinar, realizado a partir de entrevistas orientadas por Tiago Alves a doze elementos da comunidade local e crónicas radiofónicas da autoria de Liliana Elsig
Direcção artística, dramaturgia, encenação, cenografia | Leandro Ribeiro
Design, adereços e figurinos | Marta Baldaia
Interpretação | Sol d’Alma - Associação de Teatro e comunidade local, com a participação especial de DESAFIO - Grupo de Teatro da Universidade Sénior da Misericórdia de Ovar, Escola de Samba Costa de Prata, Iury Matias (violão), Laura Rui (voz), SEVERI - Grupo de Teatro de Sever do Vouga
Produção executiva | Ana Vila Real, Clara Oliveira
Centro de Arte de Ovar
22 Jul 2023 | sab | 21:30
“Sabão Potassa: O melhor da Praça”. O slogan não poderia ser mais apropriado e eu, que fui um dos muitos que esgotaram o Auditório do Centro de Arte de Ovar, em noite de estreia de “Sabão Potassa - Estórias d’Alma Lavada”, posso confirmá-lo. Entre o terno e o cáustico, o intencional e o inocente, provocador q.b., com muita fantasia e uma ponta de ironia, astucioso, irreverente, descontraído, prático, sensível e sincero, generoso e honesto até à medula, “Sabão Potassa” trouxe-nos as estórias de uns, tornadas de todos pelo poder da dádiva e da partilha. Uma dádiva e uma partilha que teve no jornalista Tiago Alves e nas entrevistas que fez a doze personalidades bem conhecidas da comunidade local, o seu ponto de partida. Posteriormente, pela pena inspirada de Liliana Elsig, os testemunhos foram subtilmente revestidos por uma fina patine de ficção e conheceram a luz do dia sob a forma de crónicas radiofónicas emitidas na rádio local Antena Vareira. Levar a palco o projecto terá sido, desde o momento em que começou a ser desenhado, a grande ambição dos seus criadores. Ontem, em noite de estreia, cumpriu-se o desígnio e o projecto deu-se a ver em toda a sua dimensão. Como referiu Leandro Ribeiro, director artístico, dramaturgo, encenador e cenógrafo da peça, “aconteceu magia”.
Vermos “Sabão Potassa - Estórias d’Alma Lavada” é vermo-nos a nós próprios. É olharmos nos olhos aqueles com quem diariamente nos cruzamos, é escutarmos as suas histórias, recordarmos as suas memórias e percebermos que são de todos e de cada um. Há um gato preto que atravessa a peça e, como é apanágio de ser-se gato e ser-se preto, traz com ele uma nota de fatalismo que as doze reguadas em cada mão que Fátima leva da professora, a “novela” à volta da gravidez da Isabel, a fonte de enriquecimento do Mário, a prisão do Moisés ou o esquecimento a que foi votado um homem que “tinha olhos e coração e fonte de loucura, e soube enaltecer a sua terra sem palavras inúteis”, parecem confirmar. Mas há também histórias de sucesso, como a do Hortênsio, cuja concretização do sonho de ter um restaurante seu não poderia ter sido mais feliz, da Maria de Lurdes, uma das três primeiras mulheres a tornarem-se presidentes de uma autarquia no pós-25 de Abril ou da Laura, uma jovem cantora com uma extraordinária carreira à sua frente. Em todas elas, de comum, encontramos a resistência e a coragem, a força de acreditar, de fazer orelhas moucas aos arautos da desgraça e seguir em frente. Será isto “ser vareiro”?
É de histórias como aquelas que se partilham em “Sabão Potassa - Estórias d’Alma Lavada” que se alimenta a “alma vareira”. Mas não se julgue que esta é uma peça só para “consumo interno”. Leandro Ribeiro soube dotar o texto de qualidades e características que lhe conferem um grau de universalidade e que fazem com que possa ser visto e entendido pelos espectadores sem qualquer tipo de condição prévia. Oferecendo um conjunto de leituras que extravasam o âmbito sociológico ou etnográfico, a peça encontra-se recheada de momentos de enorme simbolismo, de apontamentos coreográficos de grande beleza estética, de interpretações de enorme intensidade e inspiração. Dos anúncios radiofónicos ao Canada Dry e ao Formitrol ao som cavo de um búzio, dos desenhos de Zé Maia às imagens do primeiro título nacional de Basquetebol para a Ovarense, da interpretação magistral de uma versão de “La Llorona” a uma aula de Economia Doméstica, do hediondo de um levantamento rigoroso de todos os pertences de um “perigoso comunista” a uma manifestação visceral sob o lema “Há Que Capturar o Esquecimento”, de um desfile de Carnaval ao insólito de um espectador que faz questão de mostrar a sua indignação com “macacadas” e “politiquices” e abandona a sala sob forte pateada, são muitos e variados os momentos com os quais nos sentimos cúmplices e nos emocionamos. Que nos põem no rosto um sorriso, no coração um afago e nos deixam de alma lavada.
Creio que a rádio merece aqui uma palavra de destaque. Uma das bases mais sólidas de “Sabão Potassa - Estórias d’Alma Lavada” encontramo-la em dois homens da rádio. Tiago Alves, pelo seu trabalho de pesquisa e de entrevista, e Jaime Valente, alma (e corpo) da Rádio Antena Vareira e que tão bem soube dar sequência ao projecto. É justamente a rádio, com tudo aquilo que representa, que se mostra presente nos adereços como nas influências, contando ela própria histórias de resistência e de liberdade (se pensarmos que o projecto nasce em tempo de pandemia e que é nesse tempo que se desenvolvem as entrevistas, percebemos que esta resistência e esta liberdade associadas à rádio, num concelho que viveu uma cerca sanitária, adquirem um impacto e um alcance ainda maiores). A outra palavra de destaque vai para o trabalho de criação artística. É verdadeiramente genial a forma como os quadros se articulam entre si, uma palavra ou um simples gesto a dar a deixa para o quadro seguinte, em raccords que, na maior parte dos casos, roçam a perfeição. A forma como um gato preto dá lugar a um restaurante que dá lugar a um Gabinete de Apoio ao Munícipe que dá lugar a uma manifestação que dá lugar a um desfile de Carnaval… que dá lugar a um gato preto, resulta de um exercício de escrita cuidado, rigoroso, atento ao detalhe, inspirado e livre. O resto faz-se da generosidade de quase uma centena de actores em palco, da sua dedicação e entrega, do seu entusiasmo, da sua arte. Viva o Teatro!
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