LIVRO: “Ajudar a Cair”,
de Djaimilia Pereira de Almeida
Ed. Fundação Francisco Manuel dos Santos, Setembro de 2017
“Este mês ajudei a dar banho a uma mulher antes de ela dormir. A mulher estava deitada, sonolenta e nua quando entrámos no seu quarto. Humedeci uma pequena toalha turca em água morna num lavatório e juntei um pouco de sabonete líquido. Lavei o seu ventre e os seus pés passando a toalha húmida sobre a sua pele muito branca. Outra mulher, Jandira, lavou-lhe as pernas e o rosto. Ela tinha as costelas salientes, canelas e tornozelos muito finos. Nem por um instante me lembrei de mim, mas ao entrar no quarto, vendo-a sobre a cama, iluminada por uma luz mortiça, pensei que nunca mais sairia daquele quarto. (…) Senti-me diante de uma pessoa pela primeira vez - e foi à pressa. Julgo que nunca antes tinha visto um corpo nu, e o que ele me disse foi: vais levar-me contigo quando morreres.”
Julho de 2016. As férias da maioria do pessoal e de muitos dos residentes do Centro Nuno Belmar da Costa, propriedade da Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa, no Bairro de Nova Oeiras, estão a aproximar-se. Ao Centro chega Ana - nome fictício, como todos os nomes neste livro -, que irá integrar-se na rotina da instituição, privar de perto com os utentes, assumir o papel de cuidadora e fazer desta a sua segunda casa. Desse tempo ficará o registo de memórias marcantes a muitos títulos, um tempo de descoberta dos outros e de si própria. Moradora no Bairro, conhece de vista a maioria daquelas pessoas. São, para todos os efeitos, vizinhos. Mas este é um tempo de aprofundar essa relação, de conhecer o muito que se oculta para lá das aparências, de saber os “comos” e os “porquês” que importam nas vidas de cada um. De perceber que “tomar conta seja também andar equivocado sobre quem está próximo, conclusão contrária à nostalgia pelo tempo em que os vizinhos se conheciam bem”.
“Ajudar a Cair” é um testemunho precioso de quem, de fora, se dispõem a lançar sobre os outros a verdade de um juízo e a pureza de um olhar, livre de preconceitos ou de subterfúgios de qualquer ordem. O objecto deste livro é o Centro Nuno Belmar da Costa, “uma casa cheia de vida”; mas são, sobretudo, os seus utentes, alguns dos quais residem nele desde a sua abertura, em 1982. Já sem familiares vivos, têm aqui a sua casa e a sua família. Habitantes do Bairro, no qual estão perfeitamente integrados, são eles a Adelaide e o João Pedro, a Clarinha e o Vicente, a Dulce e o Nicolau, o Tiago e a Lucinda, o Octávio e a Filomena, mas também as monitoras Celeste, Marta, Jandira e Maria, a Dona Lurdes, uma das cozinheiras, ou a Directora Odete Nunes. São eles e as suas histórias que preenchem as páginas deste livro, abrindo espaço à auto-reflexão e deixando ver que “não é claro quem guia quem na tarefa de nos valermos uns aos outros, enquanto seres humanos”.
Denso, intenso, terno e sensível, “Ajudar a Cair” pede que nos demoremos nele. O que Djaimilia Pereira de Almeida conta neste livro tão curto, para ser lido depressa, são coisas que levam muito tempo a acontecer. Apenas lidas, cada uma das personagens mostra-se veloz. Mas, “quantos minutos demora David a escrever uma carta; Quantos dias demora Tiago a fazer um quadro com a máquina de escrever; quanto tempo leva Dulce a beber um café; quantas tardes tomam a Clarinha um “C”; quanto tempo demorou Celeste a sentir-se de novo em casa?” Desarmante pela simplicidade do seu olhar e da sua escrita, de uma verdade e generosidade comovedoras, a autora capta na essência o viver da instituição, tocando-nos pela capacidade de ver para além do óbvio: o sentirmo-nos tocados pelos momentos em que desaparecemos nos outros, o íntimo apenas entrevisto nas alturas em que não é claro o nosso lugar. Cabe a cada leitor medir a importância deste livro na sua própria maneira de ser e de estar na vida. A mim tocou-me. Muito.
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