TERTÚLIAS LITERÁRIAS: “Conversas às 5”,
com Rosa Alice Branco
Moderação | Joaquim Margarido Macedo
Auditório Dr. Correia de Campos | Centro de Reabilitação do Norte
11 Mai 2023 | qui | 17:00
Memorável. É desta forma que me atrevo a classificar a mais recente sessão das Tertúlias Literárias “Conversas às 5”, iniciativa do Centro de Reabilitação do Norte que leva dois anos de existência, cumpridos no final do passado mês de Abril. Memorável porque, pela primeira vez em dez sessões, foi possível ter na audiência um conjunto de utentes internados nesta unidade de saúde, conferindo um sentido pleno a uma actividade que deve ser vista como parte integrante do processo de reabilitação individual. Memorável, também, pelo dinamismo e abertura ao diálogo, naquilo que pode ser entendido como uma verdadeira tertúlia. Memorável, ainda, pela qualidade das intervenções da convidada da sessão, Rosa Alice Branco, quer pela forma como soube estabelecer a ligação entre a sua poesia e um mundo pessoal onde cabem todas as cores, quer pelos seus extraordinários dotes de comunicadora, abraçando com entusiasmo as questões colocadas e tornando simples o que pareceria complexo.
Escritora, tradutora, investigadora e promotora cultural, Rosa Alice Branco começou por aceitar o desafio de falar sobre o seu mais recente livro de poesia, “Amor Cão e Outras Palavras Que Não Adestram”, e que nos diz que “a escrita é um cão a ganir”. Abraçando “um caudal de palavras honestas”, o auditório começou por escutar a leitura de um poema por Isabel Marcolino, nele percebendo o quanto “a escrita é um trabalho a caminho do osso duro de roer” ou descobrindo os muitos sentidos que se escondem nos verbos escavar ou farejar. Há na escrita, porém, um lado musical que a suaviza. “A escrita é música”, refere a poetisa, acrescentando que “se a música não se acertar com o meu corpo não há poema”. Fá-lo citando o poeta Paul Valéry, para quem “a escrita é uma longa hesitação entre o som e o sentido”. Rejeitando tudo o que possa soar a artificioso - “temos um aliado fantástico que é o caixote do lixo” -, Rosa Alice Branco assume um estado de inconsciência (“ou de irresponsabilidade, como diria o Herman José”) na génese do poema, ao qual se segue um trabalho racional “sobre o que vale a pena, dentro da exigência que eu tenho para comigo própria”.
“Há muito tempo que queria escrever sobre predadores e presas. Como é que, de uma forma constante, queremos ser predadores e fazer dos outros presas?” Esta questão contamina “Amor Cão” no seu todo, reflectindo sobre o que de humano há no animal e o que há de animal no humano. Uma reflexão que, em dada altura, acabará por desaguar no que é racional e no que é instintivo, levando Rosa Alice Branco a afirmar: “Acredito muito mais nos meus instintos e nas minhas intuições do que na razão. É isso que faz parte do meu pacto com o mundo.” Obra que se oferece a múltiplas leituras, “Amor Cão” é, em grande medida, uma homenagem a Konrad Lorenz, “aquele senhor muito alto seguido por um bando de patinhos”, no qual a antropologia e o comportamento animal são temas dominantes. Num pequeno lugar às portas da cidade de Aveiro ou num Hotel no Luso, nas “notas para um concerto”, no gato (“célebre”) do Ramos Rosa ou no cão do Moreira Lopes, que “comeu uma data de galinhas”, a conversa toma um tom humorístico. Mas, “por mais que sejamos selvagens, de alguma forma somos sempre domesticados”. “Partir para a deriva”, como refere Roland Barthes, procurar novas perspectivas sobre a realidade, será sempre a melhor forma de luta para contrariar o adestramento a que nos querem submeter.
Derivando para “As Cores das Coisas”, o último livro da convidada e que mostra como “o nosso cérebro é uma peça mestra no jogo de instalar desejos em nós, associando objetos e realidades coloridas a sensações de satisfação e prazer”, a conversa tocou Messiaen e Kandinsky, um concerto azul, um mar verde, o mistério que reside na cor vermelha ou o lado obscuro da dor que, paradoxalmente, pode ser solar. Aberta ao público, a conversa levou as cores a focaram-se no verde ou, mais propriamente, no “espaço verde”, com o qual o geógrafo Álvaro Domingues confessou ter uma “relação irritadiça”. Professor da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, anterior convidado destas Tertúlias, Álvaro Domingues referiu-se ao espaço verde como uma “palavra-contentor” onde cabe tudo: Um vaso de manjerico, a Amazónia toda, a relva do Estádio das Antas, um tapete e uns cortinados. “Prefiro Camões, o 'verdes são os campos', e por aí me fico”, acrescentando que “verde é o esgomitado”. Falando de arquitectura, referiu que o dito espaço verde “facilita formas de projecto e de desenho que são profundamente empobrecedores”, dando como exemplo “os terrenos sobrantes, em frente às casas, não têm qualidade nenhuma. Alguns cães nem gostam de urinar lá, acham aquilo tão árido que nem para isso presta. Nem os grilos farão lá nunca uma toca. Nem um pássaro pousará, a não ser que esteja profundamente deprimido.”
A inquietação que assiste a Álvaro Domingues versus a inquietação que se espelha na poesia de Rosa Alice Branco seria certamente um tema que tomaria conta da sessão por muito mais tempo, não fosse a intervenção moderadora do moderador. “Encarreirada” de novo, a conversa espreita pela janela. Está um dia cinzento. Ou, está um dia de sol. Sentimos a mesma coisa? “Nós precisamos de cor, nós somos feitos de cor. O universo da amizade é um universo de cor. O mundo do amor é um mundo de cor, não é um mundo a preto e branco”, diz Rosa Alice Branco antes da leitura de “Design é Chocolate”, de novo na voz de Isabel Marcolino. Ligada às cores, com um sabor a Madagáscar e a vibração de um Porsche Carrera, fala-se de “Traçar um Nome no Coração do Branco”, livro de 2018 e que aborda “as coisas que me tocam”. Um livro que abre espaço aos livros anteriores da autora, para quem “de todas as variáveis, aquilo que é invariável é o estilo”. Citando Bataille - “todo o animal está no mundo quanto a água está no interior da água” -, Rosa Alice Branco confessa que “aquilo que gostava de ter na minha vida eram boas questões. São elas que nos guiam. Respostas? Nem sei se me interessam muito.” As últimas palavras constituem-se “obra prima”, uma carícia para os sentidos (e “um problema para o cérebro”). Partimos de coração cheio, “depois da curva da estrada, o olhar na curva do joelho”.
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