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quinta-feira, 20 de abril de 2023

CONCERTO: "Umbral"



CONCERTO: “Umbral”
Nuno Trocado & Jorge Louraço Figueira
Interpretação | Catarina Lacerda (voz), João Pedro Brandão (flauta, saxofone alto), Nuno Trocado (guitarra eléctrica, composição), Sérgio Tavares (contrabaixo), Acácio Salero (bateria), Pedro Pires Cabral (theremin, samples, inspirado de campo), Jorge Louraço Figueira (texto)
Ovar em Jazz 2023
Centro de Arte de Ovar
19 Abr 2023 | qua | 21:30


Um longo suspiro, um espaço em branco e logo a música que irrompe em desassossego, como pombos que se levantam da praça numa doida debandada e, no seu voo coreografado, vão cortando o ar e o céu num adejar de asas e desejos. A música é o tempo. A praça, o espaço. “Os anjos descrevem a vida das pessoas como se elas fossem outra coisa. Mas não são elas, também, anjos como nós?”, pergunta o poeta. Nem só de música se fez a primeira noite do Ovar em Jazz 2023. No espaço íntimo da caixa de palco do Centro de Arte de Ovar, a palavra “escondeu-se no umbral, bem à vista para ser apanhada”. “Buuu”, disse a palavra. “Enquanto uns choram, outros vendem lenços”, acrescentou, feita carne e sangue, dor e raiva. E mais, e mais disse a palavra, ora de mãos dadas com a música, ora erguendo-se altiva e nua. “Anda, mão; fia, dedo. Madruga e verás; trabalha e terás.”

Que o jazz é fértil na forma como sabe abraçar os mais variados géneros musicais, já o sabíamos desde que as vanguardas fizeram questão de o ser. Menos frequente é vermos, de forma tão clara, a sua integração num projecto multidisciplinar do qual fazem parte, explícita ou implicitamente, expressões artísticas como o teatro, a literatura, o cinema e a dança. Daí que uma nota de estranhamento tenha tomado conta dos indefectíveis do Ovar em Jazz que, na noite de ontem, trocaram o conforto do sofá pela improbabilidade de um abrigo como o deste “Umbral”. Um estranhamento bom, diga-se, daqueles que nos desinquietam e nos interrogam, nos obrigam a pisar o chão incerto sem apoios onde nos firmarmos e se riem de nós quando percebemos que estamos longe de “entranhar” aquilo que faz questão de permanecer “estranho”.

Na forma e no texto, há em “Umbral” uma forte componente visual que a música intensifica. Mas o contrário é igualmente verdade. Desta simbiose nascem praças esventradas cujas memórias os anjos vigiam e onde espectros batem as asas, uma mulher dorme de pé como os cavalos, um padre é assassinado e a passagem do tempo mede-se pelas voltas de Saturno. “O resto já devem conhecer do cinema”, sussurra-nos Martin Crimp, no preciso momento em que, sozinhos na plateia, sobre o lado direito da fila M, Damiel e Cassiel se debatem sobre a aplicação da palavra “obrigada”, a última que correrá da voz de Catarina Lacerda. Por mim, não tenho dúvidas. Apenas lhe mudo o género e é para ela que vai o meu “obrigado”. Para ela e para Jorge Louraço Figueira, autor dos textos. Também para os músicos que, em palco, nos guiaram pela crista de um vulcão inquieto. Ainda para quem ousou programar “Umbral” para o palco do Centro de Arte de Ovar e provou, uma vez mais, que nem só de jazz vive o (Ovar em) jazz.


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