ESPECTÁCULO: “Ficheiros Secretos”
Com Luís Osório
Convidados | João Rasteiro, Marta Temido
Cineteatro Messias, Mealhada
15 Abr 2023 | sab | 21:30
“A casa vai ruir se não formos ossos do nosso amor, se não formos corpos em furacão, sem roupa nas palavras.” “Guarda-me Esta Noite”, de Valter Lobo, foi o tema escolhido por Luís Osório para dar início aos seus “Ficheiros Secretos”, um quase monólogo que despertou interesses e mobilizou atenções, fazendo esgotar a lotação do Cineteatro Messias, na Mealhada. A escolha desta música não foi inocente, desde logo porque subir e descer na penumbra as escadas que separam o palco da plateia do renovado Messias merece bem uma prece. Ironias à parte, tanto o poema como a música são uma fonte de inspiração e dizem muito da intensidade dos sentimentos, do imponderável que é estar vivo, da incerteza dos passos que damos, “porque o tempo é um fio que pode romper hoje”. Sozinho em palco, de uma fragilidade desarmante, actor sem o ser, Luís Osório fez das fraquezas a sua maior força no momento de nos abrir as portas de um mundo desconhecido e de partilhar uma parte dos seus “ficheiros secretos”. “Faço o que posso”, dirá no fim de braços abertos, quase como quem pede desculpa. E esta será, porventura, a mais bela prova da sua integridade e verdade.
Colocando a tónica no humor, Luís Osório começou por falar da forte vacina de Pacheco Pereira contra o maoismo, do rapaz a quem Ramalho Eanes amansou com um almoço, dos móveis da Faculdade de Direito expropriados por Durão Barroso em nome da revolução, do extraordinário sentido de humor de Ferreira do Amaral e João de Deus Pinheiro que levou um vice-presidente americano a acreditar que todos os ministros portugueses não podiam ter mais de um metro e setenta, da forma como Francisco Louçã resistiu à corrupção e da sua boca “não saiu merda nenhuma” ou do paradoxo que Bagão Félix nunca mais esquecerá. Fazê-lo foi uma forma de desmistificar as personagens, de retirar delas o seu carácter austero e quase inacessível, mostrando o seu lado mais humano. Um lado humano particularmente reforçado em Maria Barroso ao votar contra a fundação do Partido Socialista, nos combates travados por Abel Almeida, o último leproso português, na vida de Siza Vieira desenhada pela tragédia, na luz sempre acesa à mesa de cabeceira de Simone de Oliveira ou no abraço de despedida de António Dias Lourenço ao seu filho. Histórias e memórias que nos fazem rir e chorar e nos lembram que todos somos “grãos da mesma mó”.
Primeiro convidado da noite, João Rasteiro leu Eugénio de Andrade e o inefável “Poema à mãe”, para alguns minutos depois ouvir da boca de Luís Osório palavras muito belas, de como o imponderável pode dar lugar a “um dos melhores poetas da sua geração”. Quem escutou igualmente palavras elogiosas foi Marta Temido, Ministra da Saúde obrigada a assumir certezas quando tudo eram dúvidas em tempos de pandemia, às quais respondeu com uma das frases mais fortes da noite: “Somos todos fragmentos.” Numa noite que não cabe em três parágrafos, entre árvores plantadas, canções de embalar e uma avó Joaquina amada acima de tudo, elejo a palavra mãe e tudo o que encerra como tema maior de uma muito enriquecedora conversa. Foi ela o vector emocional através do qual a prosa se fez poema em Eugénio de Andrade, abriu caminhos a José Saramago e moldou indelevelmente o Miguel que nos falou esta noite, surpreendendo-nos com os encontros e desencontros de vidas próprias e alheias e comovendo-nos com a força das palavras simples. Abraçando o poema de João Rasteiro, impresso em folhas ainda a cheirar a tinta, “também nós, mendigos à porta de um relâmpago, mal nos conhecemos, inaugurámos a palavra amigo”. Obrigado, Luís!
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