Muitas foram as portas que Abril abriu. Dizemos isto com emoção, olhando à nossa volta e vendo as mais belas provas daquilo que a liberdade nos trouxe. A igualdade de género, com todas as beliscadelas que continuamente sofre, é disso um bom exemplo. Nas profissões mais relevantes, como na política ou na cultura, as mulheres têm sabido conquistar o seu lugar, abrindo novos e mais largos e airosos caminhos. Casos há, porém, em que a exclusividade masculina se continua a fazer sentir como é o caso dos profissionais de Guitarra Portuguesa. É do conhecimento geral que, historicamente, este instrumento sempre esteve associado ao homem como músico, e cingido maioritariamente ao Fado como linguagem. Rompendo com a tradição, Marta Pereira da Costa vem afirmar-se como a primeira e única mulher, a nível mundial, a tocar profissionalmente Guitarra Portuguesa no Fado, apresentando uma nova Guitarra Portuguesa como “voz” do seu projeto.
No palco da Casa da Criatividade, a celebrar 48 anos de liberdade e democracia, Marta Pereira da Costa apresentou-se ao lado do pianista Alexandre Diniz para pouco mais de uma hora de grande música. As clareiras na plateia vieram comprovar, se tal fosse necessário, que a oferta de um concerto à cidade pode ter tanto de generoso e bom, como de pernicioso e malsão, mas quem se afirmou presente teve o gosto de ser brindado com doze temas criteriosamente escolhidos e superiormente interpretados, aos quais se deve acrescentar a incontornável “Grândola, Vila Morena”, já no encore, num arranjo de enorme beleza e emoção. Muito apropriadamente, “Terra” foi o tema escolhido para abrir o concerto, remetendo para uma composição original que Marta Pereira da Costa considera ser “uma homenagem à nossa terra, numa viagem de Norte a Sul” e que, ao mesmo tempo, é o tema de abertura do seu primeiro trabalho discográfico. Seguiu-se outro tema seu, “Movimento”, e “Encontro”, uma música de Rogério Charraz, inspirada e plena de sedução.
Ainda “a procissão vai no adro” e já a artista nos dá a escutar a melodia dos “Verdes Anos”, de Carlos Paredes, fundindo-a com “Summertime”, de Gershwin. Em acordes de uma textura límpida, o Fado e o Jazz deram-se as mãos com uma força inusitada, arrancando ao público uma sentida ovação. De José Lopes escutou-se o dolente “Fado Lopes” para, de seguida, mergulharmos em “Minha Alma”, aquela que foi a primeira música composta por Marta Pereira da Costa. Intimista por excelência, o concerto teve no tema “Memórias” um dos seus pontos mais altos, de tal forma a composição prima pela beleza e pelo sentimento que dela se derrama. “Dia de Feira” precedeu “E Depois do Adeus”, a senha do 25 de Abril como nunca a ouvíramos antes, inteira e limpa. “O Zeca” e “Rapsódia” trouxeram-nos as toadas imortais do Fado de Coimbra, a saudade de José Fontes Rocha, o eterno Luiz Goes e a inefável “Cantiga Para Quem Sonha”. O alinhamento deixou para o final “Além-Terra”, composta por Mário Pacheco, em mais um momento inesquecível. Depois foi a “Grândola” e o deixar a Casa da Criatividade, cravo rubro na mão, a vontade de cantar bem alto: “O povo é quem mais ordena / dentro de ti, ó cidade”.
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