A crescente atenção que, em edições mais recentes, o Guimarães Jazz tem dedicado ao auditório secundário, onde concertos de menor perfil mediático têm lugar, prende-se com razões que estão intimamente ligadas aos mecanismos atuais de funcionamento do circuito da música em geral, e do jazz em particular. Se por um lado continuam a ser dominantes os princípios de autorregulação do mercado musical, extraídos a partir de considerações, cada vez mais obsoletas e desligadas da realidade, sobre as supostas preferências do público, é igualmente evidente que hoje as fronteiras entre aquilo que se designa por arte mainstream e por, do lado oposto, arte “independente”, parecem também cada vez mais esbatidas e em processo de esvaziamento de sentido.
É nesta ideia de programação que o duo formado por Samuel Blaser e Marc Ducret encaixa perfeitamente. Nascido em 1981, o trombonista e compositor suíço Samuel Blaser corporiza o espírito terceiro-milenar da música europeia, caracterizado essencialmente pela incorporação de um vasto espectro de influências no ato criativo e pela fluidez de discursos potenciada pelo novo esperanto sonoro gerado pela globalização. Enquanto instrumentista, dedica-se à exploração dos limites do seu instrumento a solo, operando o som a partir das diferentes qualidades arquiteturais e acústicas do contexto onde grava ou atua. Por seu lado, o guitarrista Marc Ducret é atualmente considerado, em virtude de um percurso de notável integridade ética e ousadia estética, um dos nomes mais influentes nos domínios da música improvisada e experimental contemporânea.
Perante um Auditório despido de público, ao duo coube abrir a programação do último dia do Guimarães Jazz 2021. Em pouco mais de uma hora de concerto, ficou patente o seu grande virtuosismo e cultura musical, bem como a sua “atração pelo risco e pela disrupção das fórmulas impostas pela indústria musical, qualidades criativas que são exploradas com intensidade numa performance sonora e física expansiva em que a irregularidade da contra-narrativa é sublimada em sacrifício da previsibilidade das convenções”. Dizer que a sua música é agradável para os ouvidos é fugir à verdade, mas dela resulta um conjunto de experiências sensoriais que tocam cordas indefinidas lá bem no íntimo, pedindo atenção e trabalho na sua descodificação. Para os indefectíveis do Roquefort (ou do Sushi) que começaram por odiá-lo, é tempo de lembrar que a evolução do(s) gosto(s) passa por fenómenos deste género.
[Texto construído com base no programa do Guimarães Jazz 2021, em https://www.guimaraesjazz.pt/detail-eventos/20211120-samuel-blaser-andamp-marc-ducret/. Foto: Paulo Pacheco | https://www.facebook.com/CCVF.Guimaraes/photos/]
Sem comentários:
Enviar um comentário