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terça-feira, 12 de outubro de 2021

RECITAL DE PIANO E POESIA: Maja Stojanovska e Pedro Guilherme-Moreira



RECITAL DE PIANO E POESIA: Maja Stojanovska e Pedro Guilherme-Moreira
Festival Literário de Ovar 2021
Escola de Artes e Ofícios
10 Set 2021 | sex | 22:30


“É difícil mas é necessário.” Estas palavras de Pedro Guilherme-Moreira quiseram preparar-me (e prepará-lo) para uma hora de coração aberto. No final, tomado pela emoção, pude perceber o real valor desta sua advertência. Talvez por isso tenha demorado tanto tempo a agarrar naquilo que, no fecho do terceiro de cinco dias do Festival Literário de Ovar, foi uma verdadeira “lavagem da alma”. Precisei de me distanciar para ver melhor, para sentir melhor. Um mês passou, mas não houve um só dia em que não pensasse naquilo que escutei e vi, um só dia em que não continuasse a sentir as palavras e a música dentro de mim, a inundar-me até que o corpo não aguentasse mais e transbordasse em lágrimas grossas. Ainda que digam que o tempo cura tudo e essa seja a maior mentira do mundo, é tempo de regressar a essa noite, de falar dela com afecto e gratidão, de voltar a senti-la como se de volta ao meu mais aconchegante pedaço da casa, envolto num calor bom, a paz e a tranquilidade a tomarem-me por inteiro.

E assim vou, como Pedro Guilherme-Moreira, falar de “uma noite egoísta de três artistas que ficou por nascer dois anos, quando as máscaras não caíam”. Uma noite que encerra uma homenagem, a homenagem de um filho a uma mãe, ele o Pedro, ela a Mena. A mesma Mena que morreu em Novembro de 2019, a um mês dos primeiros boatos da pandemia, e que, altiva, se mostra hoje na sala, cavalete onde jaz um quadro imperfeito, a dolorosa interrupção visível na ausência de cores fortes e de brilhos faiscantes, os caminhos do efémero dominados pela ironia, pelo desconcerto e pela traição. Apesar da violência da composição, onde figuram também as tintas e os pincéis, o todo diz-nos que ninguém acaba realmente com a morte. Assim nasce o “Pequeno Tratado Sobre o Amor”, princípio e fim de um espectáculo incomum, fusão da pintura, com a música e a literatura, que arrasta consigo um “Requiem” e um “Post mortem”.

Absolutamente factuais, as palavras jorram em torrentes de amor e dádiva. Duras, cruas, elas encerram “a morte de todas as mães” e estão destinadas a “mover, mexer, incomodar, arrebatar”, como de facto moveram, mexeram, incomodaram, arrebataram. Não fora assim e não teriam servido para nada. Com a morte da mãe já em palco, tomo consciência da dificuldade em gerir a beleza e o medo da minha própria existência. Os acordes da “Sonata ao Luar” sublinham não uma vida extraordinária mas uma morte extraordinária. Composto por quem se sente um menino pequenino que não quer que levem o corpo da mãe da capela mortuária, o “requiem” transporta-me ao quarto 3, do piso 10, do Internamento Multidisciplinar do IPO do Porto, as luzes da Asprela acesas numa noite chuvosa e fria, feita dos barulhos da cidade, de lábios humedecidos com esponjas, pacotinhos de bolacha Maria molhados no chá com a força de um último desejo e as vozes de Kenny Rogers e Lionel Richie num sussurro: “In my eyes I see no one else but you / There's no other love like our love / And yes, oh yes, I'll always want you near me / I've waited for you for so long”. Então, contra todas as lógicas da anatomo-fisiologia, o coração aperta-se até ficar pequenino. Tão pequenino…

“Se não há pessoas iguais, não há vidas iguais, não há mortes iguais, não há lutos iguais”. Uns olhos em busca da vida, mas a deixá-la, são impossíveis de esquecer. Um cabelo que se afaga, um fugaz vislumbre de momentos tão cheios e tão bons, uma saudade. Um raio de sol sobre um Pai-Nosso. O primeiro episódio da terceira temporada do “The Crown” que ficou por ver naquele domingo. A enfermeira Joaninha “que te protegeu e protegerá sempre”. Fico-me por aqui. Era suposto, um mês depois, ter já “estofo” suficiente para escrever algo sobre este recital sem ter de estar sempre a levantar-me, a enxugar as lágrimas, a respirar fundo e a insistir em continuar. Não vou continuar. Quem sabe dentro de um mês regresse a este pequeno tratado sobre o amor. Por ora fico-me, mais a admiração pelo Pedro Guilherme-Moreira que é absoluta. Como conseguiu conter as emoções durante uma hora é um mistério para mim. Escuto ainda a sua voz onde pressinto ansiedade e medo. Tomo dele palavras que me inquietam e, paradoxalmente, me confortam: “Deve ser uma coisa grandiosa deixar a vida, mamã.”

1 comentário:

  1. meu querido Joaquim, terminei a leitura deste texto em lágrimas e recompus-me da irritação de não ter conseguido exactamente o que queria nessa noite, porque quando o leitor é portentoso, maravilhoso, assombroso (como é que consegue, Joaquim? Como consegue tanta penetração na intenção do autor e do objecto literário? É incrível. Deixe-me só explicar: eu consegui estar uma hora sem quebrar porque treinei em voz alta e ouvi e li o texto mais de cinquenta vezes. Ao ler as citações perfeitas do Joaquim, principalmente a última, chorei e chorarei sempre, como, espero, todos os filhos. Porque é preciso, porque a alma tem de ter essa higiene para podermos suportar a beleza e seguir em frente. Obrigado, Joaquim! Este Ovar 7 também o consagrou como uma leitor extraordinário. Nem sempre se consegue ver isso. Quase nunca, aliás.

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