CINE-CONCERTO: “Surdina” | Tó Trips
Curtas Vila do Conde
Teatro Municipal de Vila do Conde
28 Ago 2020 | sex | 21:3
A mulher morreu-lhe há 30 anos, mas Isaque ainda vive na mesma amargura de sempre, as suas rotinas simples não dispensando a visita diária à campa da mulher, que enfeita desveladamente de cravos vermelhos. O resto do tempo passa-o com os amigos, apesar de não ser dado a grandes falas. Observa o que se passa em volta e o que percebe não lhe traz qualquer conforto. Numa sociedade rural fechada, marcada pelos surtos migratórios, pela crise dos têxteis que abalou o Vale do Ave, encerrando fábrica após fábrica e lançando milhares no desemprego ou pela praga dos incêndios, tornando tudo mais pobre ainda, a bisbilhotice encontra terreno fértil para se espalhar, numa chuva de contos e ditos que não poupa nada nem ninguém. O último boato tem Isaque como um dos visados, a mulher aparentemente “regressada dos mortos”, tendo sido vista às compras na feira. O ajuste de contas começa a pairar no horizonte.
Classificado como comédia, “Surdina” tem sobretudo um lado trágico que acaba por se impor. Mais do que as situações cómicas que se sucedem – o bêbado que urina contra a porta do tascoso, os dois “casamenteiros” a forçar a pretendente ou as comadres que tudo vêem, tudo sabem e tudo comentam -, mais do que a brejeirice que pontua cada fala, mais do que os gestos ou atitudes que se prestam a duplas interpretações, é o sentimento de extrema solidão que habita os mais velhos que ressalta do filme. Há, no argumento de Valter Hugo Mãe, uma verdade muito grande na análise sociológica que faz das comunidades rurais, as gentes do Minho e a sua peculiar forma de estar sendo propícia ao jogo de equívocos que tão bem serve o filme. Mas é quando entra no interior das suas personagens, em especial na de Isaque – uma extraordinária interpretação de António Durães -, que o filme ganha espessura. O corte deste homem com o passado é um momento de redenção que nos deixa um sorriso no rosto e uma lágrima no canto do olho.
Importa, contudo, lembrar que esta não foi uma sessão de cinema trivial. Aliás, quando olhamos para uma sala meia-vazia com o rótulo de “esgotada” e em volta vemos os rostos dos espectadores apenas pela metade, percebemos que não há nisto nada de trivial. A boa notícia é que, apesar dos condicionalismos, este regresso do público às salas é bastante positivo e, servindo esta sessão de “warm-up” para o tão celebrado Festival de Curtas-Metragens de Vila do Conde, que este ano decorrerá entre os dias 03 e 11 de Outubro, as expectativas não podem deixar de estar em alta. A outra originalidade desta sessão é que tivemos em palco Tó Trips, autor da música do filme, e que fez o seu acompanhamento ao vivo. Uma música belíssima, carregada de sentimento, perfeita na correspondência que estabelece com as sequências do filme, ora alegre e livre, ora dura e triste, espelhando a vida tal como ela é. Não raras vezes me esqueci que o músico estava em palco, embalado pelas imagens e pelas melodias. E este, julgo, é o melhor elogio que posso dar a Tó Trips e à sua extraordinária contribuição para o sucesso deste filme.
Curtas Vila do Conde
Teatro Municipal de Vila do Conde
28 Ago 2020 | sex | 21:3
Realização | Rodrigo Areias
Produção | Rodrigo Areias
Portugal | 2019 | Comédia | 79 Minutos | Maiores de 14
Argumento | Valter Hugo Mãe
Fotografia | Jorge Quintela
Montagem | Tomás Baltazar
Música | Tó Trips
Interpretação | António Durães, Ângela Marques, Ana Bustorff, Emília Silvestre, Adelaide Teixeira, Fernando Moreira, Jorge Mota, Jorge Pinto, Mário Moutinho, Valdemar Santos, Filomena Gigante, Clara Nogueira, João Pedro Vaz, Rosa Quiroga
Portugal | 2019 | Comédia | 79 Minutos | Maiores de 14
A mulher morreu-lhe há 30 anos, mas Isaque ainda vive na mesma amargura de sempre, as suas rotinas simples não dispensando a visita diária à campa da mulher, que enfeita desveladamente de cravos vermelhos. O resto do tempo passa-o com os amigos, apesar de não ser dado a grandes falas. Observa o que se passa em volta e o que percebe não lhe traz qualquer conforto. Numa sociedade rural fechada, marcada pelos surtos migratórios, pela crise dos têxteis que abalou o Vale do Ave, encerrando fábrica após fábrica e lançando milhares no desemprego ou pela praga dos incêndios, tornando tudo mais pobre ainda, a bisbilhotice encontra terreno fértil para se espalhar, numa chuva de contos e ditos que não poupa nada nem ninguém. O último boato tem Isaque como um dos visados, a mulher aparentemente “regressada dos mortos”, tendo sido vista às compras na feira. O ajuste de contas começa a pairar no horizonte.
Classificado como comédia, “Surdina” tem sobretudo um lado trágico que acaba por se impor. Mais do que as situações cómicas que se sucedem – o bêbado que urina contra a porta do tascoso, os dois “casamenteiros” a forçar a pretendente ou as comadres que tudo vêem, tudo sabem e tudo comentam -, mais do que a brejeirice que pontua cada fala, mais do que os gestos ou atitudes que se prestam a duplas interpretações, é o sentimento de extrema solidão que habita os mais velhos que ressalta do filme. Há, no argumento de Valter Hugo Mãe, uma verdade muito grande na análise sociológica que faz das comunidades rurais, as gentes do Minho e a sua peculiar forma de estar sendo propícia ao jogo de equívocos que tão bem serve o filme. Mas é quando entra no interior das suas personagens, em especial na de Isaque – uma extraordinária interpretação de António Durães -, que o filme ganha espessura. O corte deste homem com o passado é um momento de redenção que nos deixa um sorriso no rosto e uma lágrima no canto do olho.
Importa, contudo, lembrar que esta não foi uma sessão de cinema trivial. Aliás, quando olhamos para uma sala meia-vazia com o rótulo de “esgotada” e em volta vemos os rostos dos espectadores apenas pela metade, percebemos que não há nisto nada de trivial. A boa notícia é que, apesar dos condicionalismos, este regresso do público às salas é bastante positivo e, servindo esta sessão de “warm-up” para o tão celebrado Festival de Curtas-Metragens de Vila do Conde, que este ano decorrerá entre os dias 03 e 11 de Outubro, as expectativas não podem deixar de estar em alta. A outra originalidade desta sessão é que tivemos em palco Tó Trips, autor da música do filme, e que fez o seu acompanhamento ao vivo. Uma música belíssima, carregada de sentimento, perfeita na correspondência que estabelece com as sequências do filme, ora alegre e livre, ora dura e triste, espelhando a vida tal como ela é. Não raras vezes me esqueci que o músico estava em palco, embalado pelas imagens e pelas melodias. E este, julgo, é o melhor elogio que posso dar a Tó Trips e à sua extraordinária contribuição para o sucesso deste filme.
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