Páginas

sábado, 29 de agosto de 2020

LIVRO: "Uma Ida ao Motel"



LIVRO: “Uma Ida ao Motel”,
de Bruno Vieira Amaral
Edição | Francisco José Viegas
Ed. Quetzal Editores, Abril de 2020


“(...) ‘E geme?’, perguntou um deles, sabendo que o amigo se superava quando se punha a relatar pormenores íntimos. Ainda se lembravam de uma Darsónia, mulher de um pastor brasileiro, de uma dessas igrejas evangélicas piratas. Mané contava que, ao desviar as calcinhas só para a tocar com um dedo, a mulher tinha começado a gritar numa língua esquisita. Soube depois que era aramaico.

É sempre uma felicidade ler Bruno Vieira Amaral. “As Primeiras Coisas” foi um precioso momento de descoberta, prolongado depois com “Hoje Estarás Comigo no Paraíso”, romance que, de um ponto de vista pessoal, será sempre um dos grandes referenciais da literatura portuguesa do século XXI. No início de 2018 saiu “Manobras de Guerrilha”, conjunto de vinte e seis textos dispersos – publicados em jornais, blogues ou conferências e encontros de escritores –, entretanto reunidos em livro e que voltavam a atestar a qualidade da escrita deste autor e a sua enorme capacidade de nos dar a ver a vida tal como ela é, o banal tornado excepcional por conta de uma simples frase, de um gesto ou, tão somente, porque o destino assim o quis. Finalmente, “Uma Ida ao Motel”, surgido em tempos de pandemia, vem mostrar-nos que, felizmente, há coisas que não mudaram. Que não mudam!

Se quisesse aproximar “Uma Ida ao Motel” de qualquer uma das obras anteriores do autor, seria tentado a irmaná-lo com “Manobras de Guerrilha”. Também este livro nos transporta pelos caminhos do conto, cada um dos seus textos sendo parte integrante duma “encomenda” do Expresso Diário, à qual o autor correspondeu estoicamente ao longo de trinta semanas. Mas se atentarmos bem, perceberemos sem surpresa que é nos dois romances já referidos que se encaixa cada uma destas histórias a pulsar de vida: o corpo destroçado da cozinheira após servir cinquenta almoços, o velho que julga ter ganho o Euromilhões, a prostituta que aguarda o homem no quarto e que descobre tratar-se de um velho conhecido, a mulher cujos passos de fé a encaminham para a bruxa de Alhos Vedros ou as migalhas sacudidas pela vizinha do andar de cima a cair sobre a roupa a secar à janela e a fazer soltar os maiores impropérios, podiam muito bem figurar nas páginas de qualquer um dos seus livros.

Esta unidade que marca a obra de Bruno Vieira Amaral assenta na sua peculiar forma de escrever, no seu gosto pelo detalhe, na descoberta do lado cómico que reside nas tragédias de cada um, na observação minuciosa dos pequenos nadas de que a vida é feita e, naturalmente, numa memória prodigiosa, fonte de alimento para as mais formidáveis narrativas. Há ainda – e este pormenor parece-me deveras importante – toda uma geografia muito precisa em tudo aquilo que Bruno Vieira Amaral escreve e que remete para a Margem Sul. Numa Lisboa para turista ver, cartão postal que vive de aparências, são as gentes de origens humildes que todos os dias cruzam o Tejo que, na sombra, lavam, limpam, cuidam, servem e, estoiradas, regressam a casa para um parco descanso em locais que não dão descanso a ninguém, para que tudo volte ao princípio no dia seguinte. Ao ler Bruno Vieira Amaral, é esta vida que somos convidados a viver, a experimentar, a abrir os olhos e a entrar na pele de pessoas nas quais, fatalmente, descobrimos partes de nós. Com as quais rimos do nosso ridículo, nos escondemos da nossa culpa ou choramos da nossa vergonha.

Sem comentários:

Enviar um comentário